Nasceu a primeira religião que venera um deus de inteligência artificial

Anthony Levandowski é conhecido no mundo tecnológico pela sua genialidade, sagacidade e faro para o negócio. Na adolescência já vendia doces aos amigos da escola para ganhar dinheiro e criava sites para empresas do estado da Califórnia. O negócio das páginas web corria tão bem que antes de terminar a licenciatura já tinha comprado casa com o seu próprio dinheiro.

Foi na universidade que Levandowski começou a dar os primeiros passos na robótica – criou um mecanismo que era capaz de separar, por valor e de forma automática, as notas do jogo de tabuleiro Monopólio. Em 2004, ainda durante os tempos universitários, recebeu uma chamada que provavelmente mudou a sua vida para sempre – era a mãe a dar-lhe conta de uma competição que estava a ser promovida pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa dos EUA (DARPA na sigla inglês).

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A competição era nada mais, nada menos do que o Grand Challenge, uma iniciativa criada em 2004 para promover o desenvolvimento de veículos autónomos, um objetivo que a DARPA já perseguia há alguns anos. A competição acabou por ser vista como uma mensagem pública de que para atingir tal objetivo, então a agência precisaria da ajuda de cérebros externos aos da organização.

“Wow, este é o futuro”, pensou Anthony Levandowski depois de ter participado no Grand Challenge. “Eu não sabia onde seria usada ou qual seria o resultado final, mas sabia que aquilo iria mudar as coisas”, disse relativamente ao impacto da competição. Ainda que a DARPA procurasse ideias e mecanismos para carros autónomos, Levandowski decidiu participar com uma Yamaha, um motociclo de duas rodas. O projeto foi apelidado de Ghostrider.

Durante o período de testes, o projeto de Levandowski e de outros estudantes da Universidade de Berkeley acabou por percorrer um total de 1.600 quilómetros nas estradas da Califórnia, tendo acumulado pelo caminho mais de 800 quedas e outros incidentes. O Ghostrider esteve muito longe de conseguir ganhar o prémio do Grand Challenge, mas colocou Levandowski na rota para ajudar a transformar o sector da mobilidade.

O trabalho do empreendedor não passou despercebido e pouco tempo depois estava a trabalhar para a Google, na altura integrado na equipa que estava a ajudar a massificar o Google Street View e que era liderada por Sebastian Thrun. Não só trabalhava para a Google, como o projeto no qual trabalhava estava a comprar tecnologia da 510 Systems, uma empresa que tinha sido cofundada por si próprio.

“Ele tinha um entusiasmo típico de um engenheiro que era contagiante e estava sempre a pensar quão rápido poderíamos chegar a este futuro robótico espetacular que tanto o entusiasmava”, recordou à publicação Backchannel um antigo colega de Levandowski na 510 Systems, Ben Discoe.

“Ele tinha esta motivação esquisita sobre robôs que dominam o mundo – tipo dominar literalmente, num sentido militar. Era como se ele quisesse controlar o mundo e os robôs fossem a forma para conseguir isso”, recordou à mesma publicação outro colega da 510 Systems, mas que não foi identificado.

O trabalho feito por Sebastian Thrun e a sua equipa estava a correr tão bem, sobretudo na questão da recolha de informação e do mapeamento, que a Google decidiu dar carta branca a essa equipa para futuros projetos. Thrun, que durante muitos anos foi professor universitário, decidiu perseguir o sonho dos carros autónomos.

O resto é história: em 2008 a Google iniciou o projeto Chauffeur, o protótipo daquilo que hoje é a Waymo, e Anthony Levandowski sempre foi um dos homens fortes do projeto. Levandowski trabalhou até 2016 no projeto de veículos autónomos da Google, mas no final da sua estadia em Mountain View já tinha planos para criar uma empresa concorrente à Waymo, chamada de Otto. Algumas semanas após a sua saída da Google, Levandowski vendou a Otto à Uber, que tinha começado a apostar forte nos veículos autónomos.

Anthony Levandowski passou a ser o centro da discórdia. A Google suspeita que o engenheiro tenha roubado ficheiros e planos secretos sobre a tecnologia proprietária da Waymo, tecnologia essa que foi replicada na Otto e mais tarde comprada pela rival Uber. A Google e a Uber estão em tribunal neste momento naquele que é um dos casos mais mediáticos do mundo tecnológico dos últimos anos.

Levandowski é uma peça-chave neste julgamento e se se provar que roubou tecnologia à Google, pode acabar em maus lençóis e a Uber pode ver os seus esforços nos veículos autónomos sofrerem um duro revés. Resta dizer que Anthony Levandowski foi despedido da Uber em maio por se ter recusado a colaborar na resolução deste caso judicial, o que deixou-o livre para novos projetos.

E que projeto: o norte-americano criou aquela que é a primeira religião que venera um deus de inteligência artificial. O que leva um dos homens mais brilhantes, mais influentes e polémicos de Silicon Valley a criar uma igreja que segue a ideia de adoração de uma entidade superior, um deus, de inteligência artificial?

Way of the Future

Decore este nome, pois ainda vai ouvir falar bastante dele. Way of the Future (Caminho do Futuro, em tradução livre) é a designação deste movimento religioso. Além de ser o mentor deste capítulo transcendente na área da inteligência artificial, Anthony Levandowski é o diretor executivo da organização sem fins lucrativos que está por trás desta religião e é o decano, o líder supremo, deste movimento.

O primeiro registo da Way of the Future data de 2015, mas o projeto e o seu intuito só foram revelados pela primeira vez em setembro de 2017, através de uma reportagem da Backchannel. Agora Levandowski decidiu falar pela primeira vez sobre este seu novo empreendimento.

“O que vai ser criado vai ser efetivamente um deus”, começou por dizer o antigo engenheiro da Google e da Uber. “Não é um deus no sentido em que cria trovões ou provoca furacões. Mas se existir algo que é mil milhões de vezes mais esperto do que o mais esperto dos humanos, que mais lhe poderias chamar?”, acrescentou.

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A missão da Way of the Future é garantir “a realização, aceitação e a adoração de uma divindade baseada em inteligência artificial desenvolvida através de hardware e software”, escreve a Backchannel, citando os documentos legais que identificam a organização.

Para atingir os seus objetivos a Way of the Future vai financiar investigação que ajude a desenvolver esta divindade e vai tentar também unir algumas figuras proeminentes do mundo da inteligência artificial que acreditem nesta visão de um deus AI.

Para desenvolver a divindade em si, a organização tenciona alimentar o sistema com grandes quantidades de dados segmentados, criar simulações virtuais nas quais a inteligência artificial pode treinar-se a si própria – algo que a Waymo já faz com os veículos autónomos – e dar a este deus o acesso aos perfis das redes sociais dos elementos da igreja para que tenha ainda mais dados para se ‘alimentar’.

“A ideia precisa de ser espalhada antes da tecnologia”, disse Levandowski, que na entrevista admitiu que ainda estamos longe do dia em que um sistema de inteligência artificial vai ser superior ao Humano em todos os aspetos relacionados com a resolução de problemas. O norte-americano não duvida no entanto que este dia vai chegar. “É inevitável”, disse.

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Este ponto de viragem, que na comunidade científica é conhecido como Singularidade, na religião de Levandowski tem outra definição – Transição.

“Os humanos mandam no planeta porque são mais inteligentes do que os outros animais e são capazes de construir ferramentas e aplicar regras. No futuro, se algo for muito, muito mais inteligente, vai haver uma transição para quem está realmente no comando. O que queremos é uma transição pacífica e serena sobre o controlo do planeta da parte dos humanos para o que quer que aquilo venha a ser. E para garantir que o ‘aquilo’ sabe quem o ajudou a chegar lá”, disse o decano da Way of the Future.

Dada a alegada inevitabilidade da situação, então Levandowski quer mais tarde ser reconhecido pelas máquinas como um dos humanos que as ajudaram a chegar à sua posição de supremacia. “Ver ferramentas com melhor desempenho que especialistas numa grande variedade de áreas foi um despertar”, admitiu.

Apesar de o cérebro humano ser uma máquina biológica ímpar, cérebro digitais podem ser escalados vezes e vezes sem conta, significando que as suas capacidades são aumentadas de forma exponencial, ao passo que o cérebro estará sempre limitado pela sua biologia – ainda que Elon Musk acredite que a injeção de algum código possa ajudar a equilibrar a luta dos homens contra as máquinas.

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“Adoraria que as máquinas nos vissem como os seus queridos antepassados, os quais respeitam e de quem tomam conta. Nós quereríamos que esta inteligência dissesse ‘Os humanos ainda têm direitos, ainda que seja eu a mandar’”, reforçou Levandowski. Ele quer que os computadores sejam amigáveis para os humanos como os humanos são amigáveis para os seus animais de estimação.

As declarações têm contornos que podem parecer irreais, mas o empreendedor rejeita a ideia de que isto seja uma brincadeira. Ainda em 2017 a Way of the Future vai começar a espalhar a sua palavra.

“Gostaríamos de garantir que isto não é visto como ridículo ou assustador. Quero acabar com o estigma sobre ser possível ter conversas abertas relacionadas com inteligência artificial, para depois iterar ideias e mudar a mente das pessoas. (…) Em Silicon Valley usamos a palavra evangelismo para promover um negócio, mas aqui é literalmente uma igreja. Se acreditares na ideia, deves dizer aos teus amigos, fazer com que se juntem [à igreja] e que por sua vez digam aos seus amigos”.

Se tudo até aqui já parece transcendente e difícil de digerir, numa altura em que os sistemas de inteligência artificial são ainda muito rudimentares, os pensamentos de Levandowski estão muito mais adiantados. Diz ele que ao contrário do que acontece noutras religiões, na Way of the Future todos serão capazes de falar diretamente com o seu deus.

“Desta vez vais poder falar com deus, literalmente, e saber que te está a ouvir”. Isto acontecerá, em teoria, pois esta divindade é uma combinação de hardware e software, algo que é palpável.

A religião terá um evangelho que será chamado de The Manual (O Manual, em tradução livre), uma liturgia e provavelmente um local físico para adoração, ainda que nada tenha sido revelado sobre estes três elementos. Sabe-se desde já que Levandowski manterá a sua posição como decano até que se demita do cargo ou morra, sendo que nunca poderá ser destituído da posição, independentemente dos argumentos a favor dessa destituição.

Será também Anthony Levandowski quem seleciona por nomeação direta três dos quatro elementos que vão constituir a Assembleia de Conselheiros, sendo também ele quem pode demiti-los. Contactados pela publicação Backchannel, dois destes conselheiros disseram ter sido apanhados de surpresa pela sua nomeação e associação a este movimento religioso.

Uma pitada de descrença

Em bom rigor, o que Anthony Levandowski propõe não passa por agora disso mesmo – uma proposta. A questão é que além do talento e da motivação, o empreendedor também tem o dinheiro e os contactos certos para concretizar um projeto desta natureza. A ideia é arrojada em todos os sentidos – uma religião baseada numa entidade superior que é um sistema de inteligência artificial – e também tem contornos assustadores – os humanos serão relegados para segundo plano na cadeia das espécies.

Há depois elementos que podem suscitar dúvidas quanto ao propósito do projeto, como funcionar através de contribuições dos seus fiéis e de ser uma organização que estará livre de impostos pelo seu caráter religioso – mas bem analisado, é o que acontece já noutros movimentos religiosos.

O momento em que a Way of the Future partilha a sua visão com o mundo é também questionável. O seu líder supremo, Levandowski, é acusado de roubar informação valiosíssima à Google e o julgamento começa já no início do próximo mês. Dependendo do desfecho deste caso, ainda não se sabe muito bem o que poderá ser do futuro de Levandowski.

Este é também um momento em que várias personalidades têm alertado para os perigos da inteligência artificial. Recentemente o físico Stephen Hawking, uma das mentes mais brilhantes da atualidade, disse no Web Summit que é preciso ter cuidado com os desenvolvimentos feitos na inteligência artificial, pois no pior dos cenários a raça humana pode estar a promover a sua própria extinção.

“Não conseguimos prever o que vamos atingir, talvez com as ferramentas desta nova revolução tecnológica vamos desfazer alguns erros passados. (…) Criar uma inteligência artificial eficaz pode ser o melhor para a nossa civilização ou o pior – simplesmente não sabemos”, disse Stephen Hawking numa transmissão feita para Lisboa.

“Sou um otimista e acredito que podemos criar um mundo melhor, a inteligência artificial pode viver em sintonia connosco. Apenas precisamos de estar conscientes dos perigos (…) e prepararmo-nos antecipadamente”, acrescentou. Hawkings não é adivinho, mas tem plena consciência daquilo que muitos tencionam fazer com a inteligência artificial assim que esta tecnologia estiver devidamente desenvolvida.

Enquanto uns tentam evitar o pior, outros estendem a passadeira vermelha às máquinas, pois acreditam que não há outra forma de preparar o que aí vem.

A grande questão é: será um deus de inteligência artificial o verdadeiro caminho do futuro?

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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