Por esta altura já muitos utilizadores têm consciência de que as grandes empresas tecnológicas sabem tudo, ou quase tudo, sobre nós, desde o que fazemos, para onde vamos e com quem falamos. As nossas vidas são verdadeiros livros abertos de metadados e a precisão desta recolha de informações chega a ser preocupante.
Ainda que não possamos falar de privacidade nas nossas vidas digitais, pelo menos há a questão da confiança para equilibrar um pouco esta relação utilizador-serviço-empresa. Ou melhor dizendo, havia.
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Volta e meia lá vem um duro golpe na relação de confiança que há entre os utilizadores e as grandes empresas de tecnologia. O pior de todos foi talvez dado pelas revelações do delator Edward Snowden quando mostrou ao mundo que várias empresas – Google, Facebook, Microsoft, Yahoo, entre outras – tinham ‘portas’ escancaradas nos seus centros de dados para a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA na sigla em inglês).
Há casos menos graves do que outros, mas que ainda assim beliscam a nossa confiança nas empresas. Lembra-se quando em 2012 a Nokia tentou convencer o mundo de que o Lumia 920 tinha um estabilizador de imagem digno de uma câmara profissional, forjando por completo as imagens da demonstração? Ou quando foi revelado que afinal as imagens partilhadas no Snapchat não se evaporavam, mas ficavam guardadas nos servidores da empresa?
Um dos maiores exemplos recentes de falta de honestidade esteve ligado ao portal Ashley Madison, uma rede social de encontros amorosos. Depois de ter sofrido um ataque informático, soube-se que muitas das mulheres que tinham perfis na plataforma eram afinal perfis falsos e geridos de forma automática por robôs com o intuito de aumentar o rácio de perfis femininos, o que por sua vez atraía utilizadores masculinos reais.
Já vimos de tudo um pouco, mas a falta de transparência das empresas não desapareceu e, em bom rigor, não para de espantar. Numa única semana foram revelados mais dois casos de alto perfil e que envolvem duas das maiores tecnológicas da atualidade: Uber e Google. É caso para dizer que lá se vai a nossa confiança nas grandes tecnológicas – outra vez.
O caso Uber
Da Uber já vieram vários exemplos de como a empresa não era propriamente correta nos tempos de liderança do seu fundador, Travis Kalanick. Basta lembrar que aquela que é uma das aplicações mais populares em todo o mundo esteve para ser expulsa da App Store da Apple, pois a Uber monitorizava os utilizadores do iOS mesmo depois de estes terem apagado a aplicação dos seus smartphones.
Acontece que ainda há esqueletos no armário e a Bloomberg esta semana fez mais um saltar cá para fora. Em outubro de 2016 a Uber foi alvo de um ataque informático de larga escala que resultou no roubo de informações pessoais de 50 milhões de utilizadores da aplicação e de sete milhões de motoristas.
A empresa concordou pagar 100 mil dólares aos piratas informáticos para que os dados roubados fossem apagados e para que não falassem do ataque bem-sucedido. O então CEO da Uber, Travis Kalanick, soube do ataque um mês depois. O diretor de segurança da Uber, Joe Sullivan, também soube do ataque e foi alegadamente um dos principais obreiros da ocultação da informação.
As altas chefias tinham plena consciência daquilo que estava a acontecer e mesmo assim não comunicaram o ataque às autoridades competentes. A Uber escondeu deliberadamente uma situação que colocou em risco a informação sensível de milhões de pessoas. Fruto desta polémica, Joe Sullivan foi despedido da empresa, assim como um dos seus braços direitos da equipa de segurança.
“Nada disto deveria ter acontecido e não vou arranjar desculpas”, disse o atual diretor executivo da Uber, Dara Khosrowshahi, em resposta às revelações feitas pela Bloomberg. O CEO garantiu que na altura foram tomadas medidas para garantir que as contas afetadas tinham monitorização extra para potenciais atividades suspeitas e revelou que entretanto o caso já foi comunicado às autoridades.
A Uber acredita que a informação roubada nunca foi usada pelos piratas informáticos, mas nada disso apaga aquela que foi mais uma machadada na sua relação com os utilizadores.
O caso Google
Ainda a poeira do caso Uber não tinha assentado e já uma nova polémica inundava os sites da especialidade: a Google recolhe informações sobre a localização dos utilizadores de equipamentos Android mesmo quando os serviços de localização estão desligados.
Uma investigação realizada pela Quartz descobriu que mesmo quando o dispositivo não tem um cartão SIM, a Google recolhe informações sobre a sua localização. Como? Segundo a publicação, desde o início de 2017 que os smartphones Android recolhem dados de torres de comunicações próximas, informação essa que depois é enviada para a tecnológica.
Utilizando uma técnica de triangulação de torres de comunicação é possível saber com relativa precisão onde está um determinado utilizador – mesmo que o mesmo tenha assegurado nas opções do telemóvel que não queria ser encontrado. Como escreve a Quartz, esta prática ultrapassa vários limites do conceito de privacidade.
A Google reconheceu as descobertas da Quartz e já disse que vai emitir uma atualização para os smartphones Android com o objetivo de desativar esta recolha de dados. Se a Google vai desativar a funcionalidade é porque considera que é negativa – se considera que é negativa, por que razão foi implementada em primeiro lugar?
Em sua defesa a Google diz que nunca deu uso a estes dados, mas admitiu que permite um direcionamento de publicidade tendo por base a informação da localização dos utilizadores.
Tanto o caso da Google como o caso da Uber são exemplos perfeitos de como as empresas estão dispostas a colocar em risco um dos elementos mais importantes na sua relação com os consumidores – a confiança – apenas para atingirem determinados objetivos. No caso da Uber foi para proteger a imagem da empresa, no caso da Google nem se percebe ao certo qual o benefício, mas sendo uma empresa que vive de metadados, todos ajudam a reforçar o negócio.
Estes ‘podres’ não são exclusivos da indústria tecnológica – o mega-escândalo dos níveis de emissão de poluentes da Volkswagen ajuda a perceber isso. Irónico ou não, são as novas tecnologias que acabam por desmascarar mais rápido a falta de transparência que há por parte das grandes empresas.