Twitch + Amazon = dois anos de sintonia

A Microsoft quis alegadamente comprar o Twitch muito provavelmente para reforçar o ecossistema da Xbox e limitar a rival PlayStation no campo do livestream. Depois tudo apontava para que fosse a Google a compradora do Twitch – houve notícias que davam como certo o negócio. O objetivo também era evidente: juntar forças com o YouTube e criar um verdadeiro colosso do vídeo online.

Mas surpresa das surpresas, foi a Amazon quem acabou por comprar o Twitch, um negócio avaliado em 970 milhões de dólares. Estávamos em 24 de agosto de 2014.



Passaram dois anos desde que o serviço de transmissão de jogos em direto integrou as fileiras daquela que é uma das maiores empresas de comércio eletrónico do mundo. Todos reconheciam o valor do Twitch – na altura conseguia gerar picos de tráfego superiores aos do Facebook e tinha 55 milhões de utilizadores mensais -, mas para alguns era um serviço que não encaixava no restante perfil da Amazon.

A verdade é que passaram 24 meses desde o negócio e o Twitch continua igual a si mesmo, sem grandes aproveitamentos da Amazon. Este pode ter sido mesmo o ‘golpe de génio’ deste negócio. A Amazon terá certamente grandes planos para o Twitch, mas a compra da empresa colocou-a numa posição extremamente privilegiada relativamente à concorrência numa área emergente: o vídeo em direto. Por agora só precisa de ficar vigilante e ir estimulando o crescimento orgânico da sua comunidade: já vão em mais de 100 milhões de utilizadores mensais.

Isto enquanto o YouTube ainda não conseguiu muito bem penetrar este segmento, o Periscope lá vai indo e o Facebook agiganta-se graças ao Facebook Live. Mas o Twitch continua a ser um portento das transmissões em direto.

Sim, é verdade que continua muito ligado ao segmento dos videojogos. Mas isso não é algo propriamente negativo para a Amazon pois os segmentos dos videojogos e dos desportos eletrónicos têm crescido de forma significativa. Se o vídeo em direto cresceu foi graças ao streaming de videojogos.

League of Legends continua a ser o jogo mais popular do Twitch, de acordo com a Statista

O segmento do gaming vai continuar a ser importante, se assim não fosse a Google não teria lançado o YouTube Gaming um ano depois do negócio falhado do Twitch. Ainda na última semana foi a vez do Facebook piscar o olho ao segmento através de um acordo com a Blizzard. E também recentemente a Microsoft comprou a Beam para ter o seu próprio ‘twitch’.

Mas deixando os videojogos de lado, estes dois últimos anos trouxeram pequenos momentos que mostram a força que o Twitch pode ter em diferentes áreas. Jeff Bezzos, líder da Amazon, pode muito bem ter feito um dos negócios da sua vida.

O prazer de ver os outros. A fazer o quê? Parece não importar

Em junho deste ano o Twitch inaugurou uma nova categoria na sua plataforma chamada Social Eating. E aqui os utilizadores podem ver a transmissão de pessoas a comer em direto.

Na prática a empresa decidiu transformar uma tendência específica do mercado sul-coreano – conhecida como mukbang – numa tendência global. Alguém viu a rapariga que comeu cem fatias de pão de forma?

O que à partida parecia apenas uma categoria sem sentido rapidamente alastrou-se pela internet. Surgiram notícias de pessoas que comiam enormes quantidades de comida em direto e vomitavam. A polémica ajudou a popularizar ainda mais a categoria junto de pessoas que não faziam a mínima ideia de que comer em direto era sequer uma categoria do Twitch. Nunca foram partilhados dados concretos sobre as visualizações, mas o objetivo de trazer novos olhares até ao Twitch terá certamente resultado.

Em 2015 foram vistos um total de 459 mil anos de vídeo no Twitch

E porque são tão populares os vídeos de pessoas a comer? Na Coreia do Sul estes vídeos são usados como companhia durante as refeições, ajudam as pessoas a sentirem-se menos sozinhas. Para muitas pessoas com um estilo de vida agitado, este poderá também ser um refúgio e um momento que torna a típica refeição em frente ao computador num momento mais divertido.

O que parecia non sense pode afinal ter um sentido cultural muito mais impactante do que seria de esperar à partida.

Twitch, um lugar para a criatividade

Em outubro de 2015 a plataforma que era o lugar de excelência para os gamers decidiu abrir um cantinho para os artistas. O objetivo do Twitch Creative era proporcionar uma forma simples e rápida de os artistas mostrarem o seu trabalho para todo o mundo – em direto claro.

Pintura, música, desenho, ilustração digital, desenvolvimento de videojogos, escultura, cosplay, joalharia, costura, entre muitas outras categorias. O Twitch pode de facto ser um lugar para quase todos os artistas. Recentemente o músico Deadmau5, reconhecido compositor de música eletrónica, estreou um novo single através do Twitch.

O mercado mobile já representa 35% das visualizações da plataforma

Enquanto escrevi este segmento do texto fiz-me acompanhar de um streamer que tocava acordeão misturado com ritmos de eletrónica. Se a tecnologia serve para trazer maior poder aos criativos, este pareceu-me um bom exemplo para partilhar aqui. Até hoje nunca tinha visto nem ouvido nada parecido. E sei que se escolhesse uma outra categoria qualquer o resultado seria igualmente interessante.

O Twitch Creative é como uma televisão: há diferentes canais temáticos e é fácil de perdermo-nos por lá.

Combater problemas sociais

A Vice publicou uma reportagem sobre o canal Misscliks, um canal gerido apenas por mulheres e que tem como objetivo criar um lugar e uma voz contra a descriminação que por vezes parece derrubar o lado positivo das plataformas.

Todas têm ligação aos videojogos, mas o que as une é a vontade de fazer diferente. Estão a tentar criar uma comunidade com capacidade de autorregulação no que diz respeito a comentários abusivos e atitudes discriminatórias.

Foram enviadas 9,1 mil milhões de mensagens só no ano de 2015

Mas em vez de terem uma atitude repressiva, tentam ter uma atitude de agregação: ou seja, não expulsam de imediato os abusadores, tentam ‘educá-los’.

É um exemplo de como uma das vertentes mais clássicas do Twitch pode ganhar novos objetivos e novas missões que vão muito além do objetivo de arranjar novos subscritores e conseguir algumas receitas através da plataforma.

Autoestrada para o mundo

Passámos por vários parágrafos sem ser necessário referir a palavra ‘Amazon’. Mais uma vez reforçamos que essa tem sido uma jogada inteligente por parte da tecnológica pois não está a querer contaminar à força a plataforma que comprou – e pela qual pagou bem.

Ainda assim começam a surgir alguns sinais de como a Amazon pode tirar proveito do Twitch – de forma indireta e direta.

De forma indireta temos por exemplo o caso dos videojogos. Um investigador do próprio Twitch, Danny Hernandez, analisou o efeito que os livestreams têm na venda de alguns jogos e os resultados mostraram que em determinados casos as vendas podem melhorar até 25%.

E o que é a Amazon? Um dos maiores mercados online do mundo e um local onde é possível encontrar quase todos os jogos. Em Portugal esse pode não ser um hábito muito enraizado – talvez devido à inexistência de uma Amazon Portugal -, mas nos EUA ou no Reino Unido a loja de ecommerce será certamente uma das primeiras paragens de muitos jogadores que querem comprar um novo título para as suas plataformas de gaming.



Ou seja, o sucesso do Twitch impulsiona alguns trabalhos, trabalhos esses que geram depois algum negócio junto da empresa-mãe, a Amazon.

Mais recentemente vimos como é que a Amazon pode no entanto tirar um proveito direto do Twitch: a empresa decidiu que os episódios piloto das suas novas séries vão ser transmitidas no Twitch. Se do ponto de vista do negócio original a comunidade de 55 milhões de utilizadores era um dos aspetos mais importantes, é preciso perceber que a Amazon comprou todo um ecossistema de tecnologia.

Ou seja, recorrendo ao Twitch a Amazon pode colocar muitos dos seus conteúdos de vídeo junto de um grande número de utilizadores com diferentes interesses e sem que para isso tenha sido necessário fazer um grande desenvolvimento tecnológico. Nos EUA a Amazon é um concorrente direto da Netflix, se um dia quiser disputar a liderança global com a rival terá certamente no Twitch um trunfo valioso.

Olhando para tudo o que foi dito até agora será difícil dizer que a compra do Twitch foi um erro, bem pelo contrário. A Amazon teve visão de longo termo e a época de grande rentabilização do Twitch ainda estará para vir. Já do lado do Twitch a escolha pela Amazon também foi acertada pois tal como disse um dos seus elementos um dia, a empresa estava a ter dificuldade em gerir todo o seu crescimento. Graças à infraestrutura cloud da Amazon. os Web Services (AWS) todos os elementos do Twitch podem concentrar-se em fazer aquilo que mais gostam que essa parte difícil é assegurada por outros.

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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