Kingdom Hearts II

Roxas e a subtileza melancólica de Kingdom Hearts II

Não precisam de clicar no refresh ou ajustar os vossos ecrãs: coloquei mesmo subtileza e Kingdom Hearts na mesma frase. Por todos os defeitos que a saga tem ao nível da narrativa – e acreditem, são mesmo MUITOS – há, em igual medida, imensos méritos que acabam por ficar diluídos nos memes e no debate sobre o melhor sistema de combate da série, que é realmente o do Kingdom Hearts III. Não me citem nisto.

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Roxas e o seu arco narrativo em Kingdom Hearts II Final Mix é, talvez, o melhor exemplo de que Tetsuya Nomura é um exímio contador de histórias através da jogabilidade. Mas vamos por passos.

Conhecemos Roxas, um rapaz de olhar triste e soturno, na introdução de Kingdom Hearts II. Durante as próximas duas a quatro horas, somos apresentados a Twilight Town através dos seus olhos e dos seus amigos Hayner, Pence e Olette. Até aqui, tudo normal – o tom é distintivamente Kingdom Hearts e até pode soar a uma aventura nova, com outro protagonista.

Contudo, os momentos em que vamos descobrindo e aprendendo a trabalhar com o novo motor gráfico são equilibrados com alguns cortes na história. Percebemos que algo se passa com o eterno protagonista, Sora e que a realidade que nos é demonstrada não é, necessariamente, a… verdadeira.

Este processo é-nos comunicado através de momentos narrativos onde, progressivamente, somos confrontados com mais inimigos e cenários onde, por razões inexplicáveis, Roxas se afasta dos seus companheiros e fica cada vez mais isolado. Este conceito – o isolamento da personagem – é exacerbado pela música, de tom melancólico nos períodos normais e sinistra nos momentos de combate.

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Roxas é um corpo estranho naquele espaço, naquele cenário e, principalmente, nas nossas TVs. Kingdom Hearts é sinónimo de Sora e, para os milhares de fãs que ligaram pela primeira vez a sequela, terá sido, no mínimo, inquietante ser obrigado a passar tanto tempo com uma personagem que não lhes é familiar.

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Este momento, que a olho nu pode ser visto apenas como um gigantesco tutorial sobre as mecânicas do jogo, termina quando o tempo pára, literalmente. Roxas é obrigado a confrontar Axel, uma misteriosa personagem encapuzada que afirma conhecê-lo e querer ajudá-lo, mas também a descobrir o porquê de possuir uma Keyblade, a arma destinada apenas aos escolhidos, como Sora.

Durante todo este processo, até chegarmos ao clímax, somos confrontados com os passos dados pelo misterioso DiZ na tentativa de recuperar Sora de um sono profundo, mas, em simultâneo, de restaurar a memória da sua existência, especialmente em Kairi… e em Roxas. Cada cenário introduz, no fim, uma percentagem até as memórias de Sora e a sua existência estarem novamente completas. Esta percentagem é, em simultâneo, antagónica ao descalabro do mundo de Roxas.

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Cada vez mais fragmentado, cada vez mais isolado. Quando invadimos a mansão abandonada, descobrimos Naminé, que nos explica tudo: somos, na verdade, um Nobody, uma entidade sem Coração (sim, literalmente.) e, por conseguinte, sem capacidade de amar, sofrer, ou sequer sentir. Um mero fantoche que imita a experiência humana. Apesar da descrição de Naminé e de, mais tarde, da exposição dada pelas várias personagens, esta introdução longa coloca-nos uma semente de desconfiança: Roxas tem sentimentos e sofre. Se ele é um Nobody, não deveria tê-los… certo?

É neste momento que Nomura e a equipa de Kingdom Hearts II decidem parar de nos expor informação e deixar-nos chegar às nossas conclusões através do jogo. Boss atrás de boss, vemo-nos diante de Sora e, sem explicação, com o súbito desaparecimento de Roxas.

Fica subentendido que, para existir um, não pode existir o outro e que a única função de Roxas, até ao momento, seria a de criar um gancho narrativo para justificar um tutorial sem a personagem principal.

Na realidade, e ao longo do jogo, são-nos dadas pistas que nos remetem para a solução: Roxas é o fragmento criado pelo momento em que Sora, no primeiro jogo, perde o seu Coração e se transforma num Heartless. Os Nobodies são criados apenas a partir de almas extremamente fortes, funcionais mesmo após se perderem para as trevas.

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Existem várias personagens da organização composta por Nobodies, a Organization XIII, que reveem Roxas nos valores e atitudes de Sora, porque… são dois lados da mesma moeda.

Kingdom Hearts II é um jogo para adolescentes. Os temas que aborda focam, de forma muito simples, a nossa capacidade de aceitação do outro, a forma como sentimentos extremos e incontroláveis nos fazem perder a nossa capacidade empática e racional, transformando-nos por vezes em meros corpos andantes.

A mensagem está na rede de suporte, nos amigos que fazemos e que nos ajudam a mantermos a nossa bússola moral e emocional equilibrada e que não há problema algum em sentir coisas. E que, mesmo que não pareça, todos temos um propósito e merecemos existir.

A subtileza deste ponto nasce na versão Final Mix, que decide inserir, perto do final do jogo, uma boss battle extra… contra Roxas. No momento em que entramos no mundo onde Roxas perdeu a memória em combate, somos confrontados, não exterior, mas interiormente, por esta personagem totalmente invasiva e estranha a Sora.

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Até àquele momento, os bosses e combates que tivemos são relativamente simples, em termos mecânicos. Ou existe uma gimmick a partir da qual construímos o nosso combate, ou existe uma simplicidade mecânica suficiente para não nos frustrar. É com natural surpresa que somos confrontados com a mesma personagem que nos acompanhou durante todo o tutorial, mas é com espanto dramático que somos absorvidos pelo pico de dificuldade extremo.

Não que o jogo se torne de repente injogável. Pelo contrário. Desta vez não estamos a lutar contra um ser sem sentimentos ou contra inimigos que nos estão apenas a testar. À nossa frente, temos uma personagem cuja existência foi passada a tentar reclamar um direito próprio: o de ser considerado, perdoem-me o anglicismo, somebody.

Os seus sentimentos e opiniões foram sempre relegadas para segundo plano. Fora tratado como um objecto, um recurso para atingir o fim, a recuperação de Sora. Mais: quantos de nós não ficamos frustrados por ter que passar tantas horas com Roxas? Quantos de nós não acelerámos e passámos cutscenes porque queríamos regressar a Sora e ao enredo principal?

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E para esfregar sal na ferida, Sora nem lhe dá a satisfação de o reconhecer. É com a característica simplicidade que, surpreso, olha para aquela personagem e lhe pergunta, quem és tu? A música, imediatamente familiar por utilizar o mesmo leit motif das cutscenes iniciais, dá repentinamente lugar a uma torrente, em piano, de intensidade. O tempo aumenta, o tom aumenta, os instrumentos da restante orquestra inflamam-se e criam a atmosfera para uma música poderosa, dolorosa… como um grito desesperado a meio dum choro.

Porque, na verdade, Roxas é confrontado com a raiz de tudo o que está errado na sua existência até ao momento. Portanto, luta como se mais nada fizesse sentido. Os seus movimentos são erráticos, intensos, obrigam-nos a utilizar todas as ferramentas aprendidas até ao momento, para não sermos completamente abalroados. E neste conjunto de emoções, é impossível não sentirmos, neste combate, a melancolia. Estaremos nós no lado certo? Queremos mesmo vencer Roxas?

Todo este processo narrativo é alcançado quase sem palavras e, maioritariamente, através da jogabilidade. Muitas vezes, torna-se complicado exprimir a dor e mágoa que o tema The Other Promise evoca. Mas, olhando com outros olhos para este combate em específico, torna-se mais simples perceber.

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Kingdom Hearts II é, sobretudo, a história de uma pessoa composta por várias facetas e ângulos. Todas elas válidas e, para se alcançar o zénite da sua existência, necessárias. Sora só alcança o seu potencial máximo no jogo após vencer Roxas e de, eventualmente, alcançar a paz com as suas existências divididas. O mesmo acontece quando nos aceitamos como somos e conseguimos olhar para o Mundo por inteiro.

Se o lore gigantesco e muitas vezes incompreensível da saga vos assusta, confiem em mim: também vão encontrar alguns dos momentos mais emocionantes e emotivos da vossa história como jogadores. Roxas e este belíssimo JRPG merecem a vossa atenção.