É provavelmente uma das melhores estratégias de marketing criadas nos últimos anos em torno de um produto. Do nada, os óculos de sol com câmara integrada Spectacles tornaram-se num sucesso desmedido – dentro do possível. Tecnologicamente falando o equipamento não tem nada de especial. Mas é justamente por esta razão que os Spectacles já são um caso de estudo.
Os óculos foram criados pela Snap Inc., a empresa-mãe do Snapchat. Aliás, os Spectacles foram criados justamente como um complemento para a rede social. O objetivo é que os utilizadores possam fazer filmagens dos seus momentos no dia a dia, como se fossem memórias, que podem depois partilhar com os seus amigos.
Mas sobre o lançamento dos Spectacles e sobre o gadget em si já falámos. Aqui basta reforçar a ideia de que os óculos têm um sensor de imagem integrados do lado direito e um indicador LED do lado esquerdo que brilha quando o dispositivo está a gravar.
Hoje queremos dedicar algum tempo à estratégia montada em torno dos Spectacles. Dizer que é genial pode não ser um exagero e temos algumas razões para justificar esta visão.
Privacidade, qual privacidade?
Quando os Spectacles foram anunciados todos lembraram-se dos Google Glass. Os óculos de realidade aumentada da Google eram tecnologia de ponta no seu estado mais puro e direcionados para um grupo de utilizadores muito específico. O aspeto futurista deliciou os geeks, mas assustou os comuns dos mortais.
Os Spectacles são justamente o contrário. Na prática são uns óculos de sol tradicionais, com um design característico e um apelo muito jovem, justamente o público-alvo do Snapchat. Até os poucos elementos tecnológicos que estão integrados nos óculos têm um destaque visual – dois círculos coloridos -, o que ajuda a dar uma personalidade forte aos Spectacles.
Comparar os Spectacles com os Google Glass é errado. Primeiro pelo posicionamento do dispositivo – desde o início que a Snap Inc. vê os Spectacles como um ‘brinquedo’ -, a seguir pelo público-alvo, também pelo próprio preço – 130 dólares para os Spectacles contra os 1.500 dos Google Glass – e pelas funcionalidades.
Os Spectacles só gravam vídeo. Os Google Glass queriam ser um computador em frente aos nossos olhos.
Mas o que mais tem surpreendido nos Spectacles é a forma a como esquivou-se por completo ao debate da privacidade. Quando os Google Glass surgiram, desde o primeiro dia que levantaram-se fortes questões relacionadas com a privacidade da vida alheia. Afinal, alguém podia estar a tirar fotografias ou a fazer vídeos de si, sem que desse conta disso.
Aos poucos os Google Glass começaram a ser proibidos em alguns locais nos EUA, incluindo restaurantes. A forma como a Google não endereçou as questões da privacidade nos Glass foi sem dúvida um dos elementos que contribuiu para a capitulação daquele que foi um dos gadgets mais ambiciosos de sempre.
Já com os Spectacles a questão da privacidade não se tem colocado. Desde o início que ninguém coloca em causa o facto de também com os Spectacles você poder estar a ser filmado.
Isto não é justamente uma impressão, são factos. Aqui ficam algumas análises aos Spectacles – CNet, The Verge, Business Insider, Mashable e Wired. Em nenhuma destas publicações é feita uma única referência a possíveis questões de privacidade.
Como é isto possível? Os Spectacles são um equipamento mais user-friendly e não tão intimidatórios. O à vontade das pessoas com câmaras e redes sociais aumentou significativamente nos últimos quatro anos. E os Spectacles têm um indicador visual que diz claramente quando está a ser gravado um vídeo ou não.
Ou seja, a Snap Inc. fez um trabalho de grande categoria para evitar aquela que podia ser a maior dor de cabeça deste projeto. Missão bem-sucedida.
Febre como há muito não se via
Sempre que era lançado um novo iPhone, multiplicavam-se as filas de pessoas à porta de Apple Stores em todo o mundo. Com a afirmação das vendas online esse efeito de viralidade perdeu-se um pouco, mas os Spectacles trouxeram de volta a loucura das filas.
É assim que funciona: todos os dias a Snap Inc. coloca uma máquina de venda automática numa cidade dos EUA. Ninguém sabe qual cidade vai ser até que a própria empresa o diga no site e nas redes sociais, no exato momento em que a máquina fica acessível.
Uma máquina a vender algumas dezenas de óculos de sol por dia não vai tornar a Snap Inc. na empresa mais rica do mundo. Mas o objetivo também não é esse. O objetivo é justamente criar um conceito de venda que crie a sensação de exclusividade, desperte a sensação de necessidade e que torne o simples ato de comprar uns óculos de sol numa experiência única.
Para desafiar ainda mais a vontade dos consumidores a Snap Inc. até já colocou uma máquina de vendas no Grand Canyon.
Independentemente de onde a máquina é colocada, os óculos esgotam. Esgotam ao ponto de os Spectacles serem ainda um item raro que é vendido a milhares de dólares em mercados online como o eBay. Por exemplo, um repórter da Wired foi para a fila num dos dias, já não conseguiu assegurar uma unidade dos Spectacles e acabou por comprar os óculos por 600 dólares a alguém que já tinha conseguido uma unidade.
Este é outro dos pontos críticos do marketing dos Spectacles: nem os grandes meios de comunicação da especialidade tiveram acesso especial a uma unidade. Se querem, têm de ir para a fila como os outros. E quase todos eles estão a fazer notícias diárias sobre os Spectacles – contam como conseguiram os óculos e vão dando relatos de como as outras pessoas ‘lutam’ para conseguirem os óculos.
Conclusão: sem gastar um único cêntimo os Spectacles estão a ter espaço ‘premium’ em todos os grandes meios de comunicação norte-americanos. Aqui uma reportagem do The Wall Street Journal.
A abrangência do fenómeno estende-se depois às rede sociais. Quem está nas filas partilha o momento com toda a internet, seja no Snapchat, no Instagram, no Twitter ou no Facebook. Quem passa por perto também regista a ‘loucura’ das filas. Quem está longe do local onde está a máquina de vendas questiona-se quando irá ficar mais próxima de si. Dizer que toda a gente está a falar dos Spectacles é um exagero, mas milhões de pessoas estão a ser expostas à marca e ao conceito, disso não há dúvida.
A Snap Inc. está a alimentar de forma orgânica o projeto e está a criar em poucas semanas um dos grandes sucessos de 2016.
Crédito: Vergence Labs
Se a estratégia de marketing e social dos Spectacles deve-se e muito à forma como a Snap Inc. pensa os seus produtos, os óculos em si merecem uma lista de créditos muito maiores. O conceito dos Spectacles, como óculos de sol tradicionais com uma câmara integrada, foi desenvolvido pela Vergence Labs.
Esta pequena startup norte-americana foi adquirida pelo Snapchat em 2014 por um valor próximo aos 15 milhões de dólares. Só por este motivo já dá para ver que os Spectacles estão a revelar-se um bom negócio e a aquisição sempre esteve envolta em grande secretismo.
Olhando para o produto que a Vergence Labs tinha em 2013, os Epiphany Eyewear, é fácil de concluir que na altura o equipamento já estava muito próximo daquilo que os Spectacles são atualmente.
A Vergence Labs foi fundada originalmente em 2011 por Erick Miller e Jonathan Rodriguez, com o primeiro cofundador a ter abandonado o Snapchat seis meses depois da aquisição.
Numa reportagem do Business Insider é dito como no início do projeto, quando os dois cofundadores ainda tentavam encontrar os primeiros investidores, todos achavam o conceito interessante, mas ninguém tinha real interesse. Na altura todos procuravam a próxima grande aplicação móvel, não óculos com sensores de imagem. A chegada dos Google Glass não ajudou, mas a equipa da Vergence Labs desde o início manteve o espírito de querer ser algo completamente diferente e mais amigável para os utilizadores.
Nos primeiros tempos de vida dos Epiphany Eyewear, a equipa da Vergence Labs estava a contemplar funcionalidades de realidade aumentada, algo que também tem uma forte ligação ao Snapchat através dos filtros em direto.
Recentemente foi descoberto que os Spectacles têm um easter egg: basta apontar a câmara dos óculos para a caixa onde vêm embalados e o dispositivo desbloqueia um novo filtro para o Snapchat. Ou seja, talvez exista mais tecnologia nestes óculos do que à primeira vista parece.
Uma marca jovem no mundo dos grandes
O lançamento dos Spectacles ajudou a cunhar o espírito criativo, jovem e irreverente da Snap Inc. A empresa precisa de manter esta imagem para conseguir ser apelativa para os investidores caso decida mesmo entrar na bolsa de valores em março de 2017.
Diz a imprensa especializada que o Snapchat pode atingir uma valorização de 25 mil milhões de dólares. Mas no dia em que isso acontecer, tudo vai mudar para a tecnológica. Os investidores não vão querer apenas algumas centenas de óculos vendidos por dia, vão querer milhares. Como é que a Snap Inc. vai responder?
E à medida que os óculos tornam-se mais populares, vão levantar-se outras questões. A da privacidade será seguramente uma, como escreveu um repórter do Mashable.
Independentemente daquilo que o futuro trouxer, os Spectacles devem ser vistos por qualquer empresa, seja grande ou pequena, como um exemplo a seguir na comercialização de um novo gadget.
Definitivamente os ‘miúdos’ da Snap Inc. fizeram um trabalho de casa bem feito 😎.