Está feito. Há um videojogo português que está disponível nas principais plataformas de gaming da atualidade: iOS e Android, Windows, macOS e Linux através da Steam, Xbox One, Nintendo Wii U e Nintendo 3DS, e a partir de hoje também disponível na PlayStation 4. Quest of Dungeons é um caso único na indústria portuguesa dos videojogos no geral, mas o feito é igualmente notável para uma pessoa: David Amador.
David Amador é o fundador da Upfall Studios, o estúdio independente que está por trás do jogo Quest of Dungeons. O próprio nome Upfall Studios acaba por ser sinónimo de David Amador pois a esmagadora maioria do trabalho foi feito apenas por si.
O que acaba de atingir é especial e algo que o programador de 32 anos, admite, nunca imaginou que viesse a acontecer.
“Não, não. E estou mesmo a ser sincero. Já tinha tentado com um outro projeto. Fui ter com a Microsoft, fui ter com a Sony há uns anos e foi o redondo ‘não’. ‘Não, não queremos. Não, não serve’… as respostas politicamente corretas, mas não queriam. Como eu tinha dispensado muito tempo a fazer isso e foi ‘não’, eu no Quest of Dungeons não estava mesmo nada à espera. Sou mesmo honesto, estava a fazer por diversão e aconteceu naturalmente”.
Quem tem acompanhado a história de Quest of Dungeons sabe que a aventura do jogo já dura há quase quatro anos. O que começou por ser um título apenas pensado para tablet e em desenvolvimento em part-time, sobretudo à noite, acabou por tornar-se mais tarde no modo de vida de David Amador.
“A ideia original até era só dispositivos tablet, nem sequer era telemóvel, era tablet porque eu achava que era mais confortável. O Steam foi o primeiro lançamento porque durante a fase de testes houve muita gente a dizer ‘deixa-me experimentar isso em PC, devias fazer uma versão em PC’. Eu fiz um protótipo para PC e as pessoas gostaram, então, foi por pedido, porque eu na altura não estava a pensar sequer fazer isso. Não achava, sequer, que o Steam quisesse saber. É um jogo demasiado de nicho”.
Quest of Dungeons é um role playing game que encaixa dentro da categoria roguelike: um estilo que caracteriza-se pelo seu carácter procedimental, isto é, cada vez que começa uma nova aventura em Quest of Dungeons os níveis, as armas, os inimigos e a disposição dos itens são diferentes. Isto acaba por trazer uma dificuldade acrescida ao jogo, mas também uma identidade muito própria.
Quando joga Quest of Dungeons a pergunta não é se a sua personagem vai morrer, a pergunta é quantas vezes terá de morrer até conseguir completar o jogo pela primeira vez.
Junte-se a isto uma arte retro, totalmente pixelizada, personagens com um humor muito próprio e tem como resultado final um dos videojogos que promete ficar para a história da indústria portuguesa.
“Devias ir sozinho”
Quem já jogou Quest of Dungeons sabe que esta é uma das frases mais icónicas do jogo e que marca o início das aventuras, quando quatro guerreiros estão sentados à volta de uma fogueira a decidir quem é que deve ir derrotar uma força das trevas que veio roubar a luz que havia no reino de Vyrul.
Curiosidade ou não, Quest of Dungeons acabou por ser uma aventura que o próprio David Amador decidiu fazer maioritariamente sozinho. Contou com a ajuda pontual de outras pessoas em algumas fases de desenvolvimento, mas a conceção, design, motor de jogo, marketing e tudo o mais foi assegurado apenas por si nestes últimos quatro anos.
“É cansativo. Porque chega a uma altura em que começas a fartar-te do próprio jogo. Inicialmente ainda conseguia acrescentar coisas naturalmente, na versão Xbox levou imenso conteúdo porque ainda tinha várias ideias, agora já não me é tão natural acrescentar coisas ao jogo. Já estou um pouco ‘Ok, acho que está assim, acho que está completo, acho que está bom’. Desafiante foi encontrar motivação para estar este tempo todo a trabalhar no jogo, sem saberes como vai resultar”.
Esta motivação foi sendo dada por amigos e pela própria resposta que o jogo foi tendo dos jogadores nos diferentes ecossistemas.
“Os meus amigos dizem que é mais teimosia. Quando fiz o salto para o Steam e depois houve pessoas a perguntar ‘E consolas? Era interessante’, eu foi mais por teimosia, porque não sabia como ia resultar. A minha ideia inicial era, ‘eu gostava de ter um jogo numa consola, não sei se vai resultar alguma coisa, se vai vender, mas eu gostava’. Então arranjei motivação muito por ter esse gosto de querer ver o jogo numa consola, ver como é que resultaria”.
O homem quis e a obra nasceu. O percurso nem sempre foi fácil pois se trabalhar sozinho é sinónimo de sossego, também é sinónimo da ausência de contrabalanço. “Daí a parte de eu estar a falar da motivação, porque é mais difícil porque eu não podia voltar-me para o colega do lado e dizer ‘eh pá, está a correr mal’ e ele ‘vá, temos que acabar isto’, porque não havia essa parte”.
David Amador contou ao FUTURE BEHIND que chegou a ter momentos em que quase desistiu de novos lançamentos para Quest of Dungeons. “A versão da Nintendo quase foi cancelada, logo ao início, porque foi complicado. (…) Mas houve muitas alturas em que pensei que se calhar não valia a pena, mais por não valer a pena se calhar fazer, porque não ia compensar e também por estar saturado. Às vezes saturas-te do projeto quando há bugs”.
Foram centenas de horas de trabalho dedicadas a Quest of Dungeons, sem saber ao certo quantas vezes morreu no próprio jogo. “Eu não sou assim tão bom jogador no jogo como as pessoas possam pensar, por causa da parte procedimental”, explica o criador português.
O cansaço e as mortes não deixaram David pelo caminho e o resultado está agora à vista. Perguntamos-lhe se se sentia especial com o que acaba de atingir.
“Fico contente, obviamente. Porque é um objetivo para mim pessoalmente e até mesmo a nível de estúdio porque prova que sou capaz de fazer, sou capaz de ir ter com as empresas, de produzir e desenvolver um jogo. A qualidade e o quão grande o jogo é, vai depender do budget e das pessoas que tenho à minha volta. Fico contente. Mas, a parte que fico mais contente é ter conseguido, ponto final”.
A vez da PS4
Estivemos à conversa com o David na véspera de mais um lançamento de Quest of Dungeons – provavelmente o último. E se pensa que a experiência de outros lançamentos já podia ter sacudido algum nervosismo, acaba por acontecer justamente o contrário.
“Fico sempre nervoso. Aliás, eu acho que cada vez fico mais. Com as consolas tem sido sempre mais porque são públicos ligeiramente diferentes. A Nintendo já tinha muito mais jogos deste género, por exemplo retrostyle, então sabia que havia pessoas à procura, mas numa PlayStation e numa Microsoft nunca sei bem como vão receber. Fico sempre nervoso porque é difícil ter essa noção”.
Nas horas que antecederam o lançamento, David estava a trabalhar num pequeno patch para o dia de estreia de Quest of Dungeons na PlayStation 4, a consola doméstica da atual geração que tem uma maior base instalada: 50 milhões de consolas distribuídas por todo o mundo.
À hora de publicação deste artigo já o jogo está disponível na PlayStation Store e isso provavelmente significa que o fundador da Upfall Studios deve estar no Twitter a tirar dúvidas a potenciais novos jogadores. Pois como o próprio David diz, “é aquela fase crítica, a pessoa decide naquele momento se quer comprar ou não”.
Nestes primeiros momentos após a publicação do jogo na PlayStation Store é também quando começam a chegar as primeiras análises ao jogo. Quanto às expectativas sobre o lançamento na consola da Sony Interactive Entertainment, David Amador prefere jogar à defesa.
“Estou a tentar não ter expectativas porque depois é sempre complicado apanhar desilusões. Tenho noção mais ou menos das outras plataformas, tem sido mais ou menos equilibrado. (…) Eu vejo muitos jogos na PlayStation, mas não vejo tanto roguelike. Havia muita procura deste género de jogo na 3DS, na Xbox não havia nada quando eu lancei, portanto não sei bem como vai ser, não tenho noção, nunca lancei um jogo na PlayStation, não sei o que vai dar. Se desse para cobrir os custos era bom”.
A versão para a Xbox One é, de acordo com David Amador, aquele que até agora foi melhor recebida junto da crítica
A parte financeira desta aventura é uma das que suscita maior interesse e curiosidade. David Amador não revela o número de cópias que o jogo já vendeu, nem quanto já ganhou ou investiu neste videojogo. Mas partilha, por exemplo, que o lançamento do jogo no sistema operativo Android foi uma boa surpresa.
O ecossistema da Google é conhecido por ter utilizadores que gastam menos nas aplicações móveis e também tem um maior perfil de pirataria. Os amigos disseram a David ‘não, não faças isso, isso não vai vender’, mas depois de bem ponderada a situação, lá se deu o desenvolvimento.
Foi preciso apenas um mês até Quest of Dungeons estar pronto para estrear no Android. “Não estou a dizer que aquilo vendeu estupidamente bem, não foi nada disso, aquilo vendeu menos do que na Steam, mas vendeu mais do que no iOS. (…) Fiquei bastante admirado e pensei ‘Ok, há aqui potencial de mercado para pessoas que só procuram títulos em que tu pagas e não tens mais chatices nenhumas’. Fiquei bastante admirado”.
Mesmo com o lançamento na PlayStation 4, David Amador ainda não encerra o ‘dossiê’ Quest of Dungeons. O objetivo para os próximos meses é continuar a rentabilizar o jogo nas plataformas onde está disponível e ir trabalhando em atualizações que sejam necessárias. Neste momento nem o facto de o lançamento da Nintendo Switch estar iminente parece desviar o criativo de Vila Nova de Milfontes da vontade de querer partir para uma nova aventura.
“De uma perspetiva de negócio, faz todo o sentido eu passar para lá [Switch] o jogo, mas honestamente nem sequer abordei a Nintendo sobre isso, vejo lá mais para a frente”.
Relação com os grandes
Publicar nas plataformas da Valve, Microsoft, Nintendo, Sony, Apple e Google tornam David Amador num caso único em Portugal no que diz respeito aos processos de submissão de videojogos para aprovação.
“O patamar das consolas é totalmente diferente, sobretudo a nível de custos”, começa por dizer. O fundador da Upfall Studios salienta que a Microsoft, a Nintendo e a Sony têm um rigor muito superior às restantes plataformas no que diz respeito à publicação de videojogos. No Steam e no Android, por exemplo, o jogo pode estar cheio de bugs que é aprovado de qualquer das formas. David partilhou depois um pouco da sua experiência.
Os jogadores da versão Steam já morreram mais de 464 mil vezes no jogo
“Aquela que foi mais rápida na altura foi a Microsoft, porque eles neste momento têm aquele programa ID@Xbox, mesmo para developers. Todas elas trabalham com indies, mas a Microsoft tem mesmo aquele programa específico. (…) Eu contactei-os, mandei-lhes o jogo e num mês tinha o kit de desenvolvimento em casa”.
“Nas outras demorou mais tempo a tratar da parte de negócio. Com a Nintendo, na altura, ainda era feito no sistema tradicional e eu tive que mandar o currículo de cada pessoa da empresa – que neste caso era só eu – porque eles queriam garantir que as pessoas tinham conhecimentos técnicos para trabalhar com as consolas”.
“A Sony foi mais ou menos igual, levou um pouco mais de tempo porque eles têm outras regras que às vezes podem ser difíceis para uma pessoa só. Por exemplo, tu tens várias coisas que precisas de assinar, como os acordos de não divulgação”. No caso da gigante japonesa, explicou David Amador, a empresa tinha receio que os freelancers que colaboravam em Quest of Dungeons tivessem acesso a informações confidenciais.
“A parte burocrática é uma coisa que leva mais tempo, mas depois de entrares todas elas têm as certificações, todas elas têm as guidelines diferentes, mas é tudo dentro da mesma onda. A versão da PlayStation levou menos tempo a desenvolver porque eu já tinha noção de quase tudo o que eles me poderiam pedir derivado às outras, então simplificou. Se esta tivesse sido a primeira, se calhar tinha pensado que era a mais complicada”.
A Link to the Past
Um dos jogos mais aclamados da franquia Zelda é também um dos videojogos preferidos de David Amador. Não consegue escolher de qual gosta mais, mas além de A Link to The Past, coloca no seu top três o primeiro jogo de Half Life e os primeiros dois títulos de Broken Sword.
A Link to the Past [uma ligação com o passado, em tradução livre] é aquilo que David vai acabar por manter com Quest of Dungeons, mesmo agora que começa a procura por um novo desafio.
“Sei que mesmo começando um projeto novo não vou conseguir cortar laços com o Quest of Dungeons, vai ser impossível, porque eu não quero, mas não vou conseguir cortar laços, vai haver um processo de transição”.
Perguntámos a David Amador o que é que ele vai fazer a seguir na sua vida. Soltou uma gargalhada.
“Isso é uma pergunta mesmo daquelas ‘Onde é que te vês daqui a cinco anos?’. Agora, a não ser que algo me impeça, quero começar a trabalhar noutro projeto. Não sei o que é, estou com um bocado de receio de me meter num projeto de dois ou três anos e não queria”.
“Preferia uma coisa mais curta. Tenho andado a fazer umas brincadeiras, é mais por aí. A minha ideia até é fazer agora algo por diversão, que não tenha aquela pressão de trabalhar um mês ou dois numa coisa, como fiz neste ao fim e ao cabo. Trabalhar numa coisa por diversão e ver o que é que dá”.
David só não adianta mais porque nem ele sabe o que é que aí vem. A entrevista terminou com duas certezas: quer trabalhar com mais uma pessoa, alguém que fique responsável pela arte do jogo e que seja a presença que provavelmente lhe faltou nestes quatro anos. A segunda representa por completo aquilo que o programador atingiu com Quest of Dungeons.
“A minha ideia era continuar como independente”.