Construir o PuzzlePhone, uma peça de cada vez

Na escola aprendemos que o corpo humano divide-se em três partes: cabeça, tronco e membros. A empresa finlandesa PuzzlePhone está a desenvolver um conceito de smartphone que não foge muito a esta trilogia. Para a tecnológica um telemóvel é composto por ‘cérebro’, ‘coluna’ e ‘coração’. É assim que pretendem manter vivo o sonho de um smartphone modular.

Tal como o nome indica, um smartphone modular é um equipamento constituído por diferentes módulos que podem ser substituídos como se fossem peças de um puzzle – mas sem a componente do quebra-cabeças. A abordagem que a PuzzlePhone quer dar aos seus equipamentos é diferente daquela explorada pela Google com o Project Ara, da LG com o G5 ou da Motorola com o Moto Z.




A PuzzlePhone está a tentar criar um dispositivo que permite de facto ao utilizador trocar um ecrã quando está partido, aumentar a capacidade da bateria quando precisar e dar um salto na capacidade de processamento quando já não estiver satisfeito com a que tem.

Este é o PuzzlePhone:


O projeto foi idealizado por Alejandro Santacreu Alfonso, um empreendedor espanhol que foi viver para a Finlândia em 2013. Alejandro diz ter apresentado o seu conceito de smartphone modular antes do projeto Phone Blocks, do designer David Hakens – aquele que ajudou a popularizar o conceito de telemóvel às peças e que acabou por dar origem ao Project Ara.

Para provar que a sua ideia estava lá – e para percebermos também um pouco como evoluiu o PuzzlePhone -, fica aqui o vídeo publicado em janeiro de 2013.

“Honestamente não fiz nada para o fazer avançar durante nove meses. Estive bastante ocupado a recomeçar a minha vida e a mudar-me de Espanha para a Finlândia. Vim para este país para voltar à universidade. Agora já acabei os meus estudos e a minha tese de projeto”, explicou  Alejandro Santacreu Alfonso, em entrevista ao FUTURE BEHIND, a propósito do hiato do seu projeto.

A ideia do PuzzlePhone surgiu-lhe depois de ter tido problemas com a reparação do smartphone. A marca não o quis compor, o operador de telecomunicações também não assumiu responsabilidade, o ecrã precisava de ser trocado e foi o próprio Alejandro quem acabou por meter as mãos ‘na massa’.

O CEO da PuzzlePhone diz que o design mecânico do equipamento já está 95% completo, mas apenas existe em maqueta virtual

“Foi uma situação sem sentido. Foi assim que me surgiu esta ideia, que está alinhada com a forma como os smartphones e os tablets são fabricados. Aquelas três peças é o que podes encontrar dentro de qualquer smartphone. Dizemos muitas vezes nas nossas apresentações que já tens um puzzlephone no teu bolso, mas ainda não desfrutas dele”.

“Mantemos as coisas bastante simples, para que possa espalhar-se facilmente por todos os fabricantes num sentido em que a nossa arquitetura e o nosso layout possam ser facilmente licenciados por qualquer um”, acrescentou.

Hardware aberto à comunidade

Além da modularidade do equipamento em si, uma das características que destaca o PuzzlePhone de outros smartphones e marcas de dispositivos móveis no mercado é o facto de estar a ser projetado num sistema aberto. A ideia é que qualquer fabricante tenha a informação e o conhecimento necessários para criar módulos para o ecossistema do PuzzlePhone.

Assim seria possível ter o ‘cérebro’ das marcas A, B ou C, a ‘coluna’ fabricada pelas marcas A, D ou E e ter ainda um ‘coração’ construído pelas empresas X, Y ou Z.

Se pensarmos no estado atual dos smartphones já é um pouco isto que acontece. Muitos equipamentos usam sensores fotográficos da Sony. Outros usam ecrãs da LG. Outros usam processadores da MediaTek.

É um pouco neste sentido que Alejandro Santacreu Alfonso diz já haver um PuzzlePhone no bolso de cada um. Agora falta apenas que as empresas estejam dispostas a separar algumas peças pelo bem do equipamento, do consumidor e também da natureza.

O ecrã e chips do PuzzlePhone duram dez anos, a bateria dura três, garante a empresa

A sustentabilidade é uma das grandes bandeiras dos projetos modulares. “Fazes o telemóvel para ser durável, atualizável e a sustentabilidade vem como resultado destes critérios”.

“Penso que se fizeres algo para ser durável e atualizável, tudo o resto vem daí. É mais uma questão de engenharia. Mas claro que acreditamos que o planeta precisa de ser muito bem preservado, caso contrário não existe sítio para fazer chamadas”, concluiu em tom irónico o empreendedor espanhol.

O carácter aberto do projeto permitirá ainda a existência de smartphones modulares em diferentes níveis de preço. O primeiro modelo da PuzzlePhone deverá custar 599 euros quando chegar ao mercado, mas Alejandro Santacreu acredita que será possível comprar versões mais baratas.

Para os fabricantes de hardware, criar módulos para o PuzzlePhone pode representar uma despesa baixa – apenas precisam de rentabilizar o trabalho que já desenvolvem para outros equipamentos. Claro que dependendo depois do parceiro de fabrico, o valor varia.

“Pode haver um PuzzlePhone de 300 euros, pode haver um de 3.000 euros se tiver características exóticas”, defende o diretor executivo da empresa finlandesa.

A caminhada

Entre o primeiro conceito do PuzzlePhone e o momento atual já passaram mais de três anos. Tanto ao nível do desenvolvimento do produto, como ao nível financiamento, este tem sido um projeto de aprendizagem para Alejandro Santacreu Alfonso.

“Primeiro começas com as intenções de design para que pareça bonito e adeque-se às utilizações dos clientes. Depois pões designers industriais e engenheiros numa sala e simplificas os processos. Basicamente eles combatem até haver um ponto de encontro no qual o smartphone ainda parece não ser feio, mas é funcional como deve e resolve os problemas que queres que resolvam”.

“Essa é uma das muitas formas de gerir o processo. No início fizemo-lo com recursos muito limitados. Antes de criarmos a empresa em setembro de 2014, éramos uma equipa muito pequena de designers industriais, eu e três pessoas a ajudar. Era tudo pro bono, não havia financiamento”, relembrou o espanhol.

Na imagem vemos o fundador da PuzzlePhone, Alejandro Santacreu Alfonso. #Crédito: PuzzlePhone / Facebook

Nestes três anos a PuzzlePhone conseguiu algumas rondas de financiamento e também realizou uma campanha de crowdfunding bem-sucedida no Indiegogo, através da qual conseguiu amealhar mais 116 mil dólares, o equivalente a 105 mil euros.

Entre os atuais financiadores do projeto está a Comissão Europeia. A chegada de fundos europeus foi muito importante pois ao haver dinheiro público envolvido, o interesse dos investidores privados aumenta de forma significativa. De tal forma que Alejandro diz terem conseguido três vezes mais dinheiro depois do apoio da CE.

Apesar de haver algum dinheiro a entrar para colocar o projeto em movimento, isso não significa que a tarefa da equipa fique mais facilitada.

“A maior dificuldade é teres de provar aos investidores que o projeto é praticável”, confessou o CEO da PuzzlePhone.

Para tentar tornar o seu conceito de telemóvel mais apelativo, ‘desmembraram’ um smartphone da Samsung e decidiram montá-lo já como se fosse um PuzzlePhone. O protótipo estava funcional e devia conseguir captar melhor a atenção dos investidores. Mas não foi isso que aconteceu.

“Ainda havia algo que os investidores perguntavam e no que toca a hardware, parece que nenhuma resposta é boa o suficiente. Principalmente se estiveres a desenvolver um smartphone modular, toda a gente pensa que és louco ou assim”.

“O facto de não ser atualizável, como uma aplicação, é percecionado como um grande risco. Existe demasiada obscuridade, mesmo quando vens deste mundo – nós na empresa vimos do mundo do fabrico, do desenvolvimento e da expedição de equipamentos”.

“Estamos a sofrer dessa falha, entre o risco percecionado e o verdadeiro estado da arte da tecnologia à tua volta. Esse é o maior problema”.

Agora a PuzzlePhone está num momento de menor fulgor pois está à espera da segunda fatia do investimento da Comissão Europeia. Alejandro Santacreu espera que quando o dinheiro chegar traga consigo o mesmo momentum positivo do investimento anterior.

Muito mais do que um telefone

Se o facto de ser um smartphone às peças, de ser desenvolvido na Europa e de estar a apostar num ecossistema de hardware aberto já são motivos suficientes para colocar o PuzzlePhone num patamar à parte, a empresa ainda tem mais algumas cartas na manga.

A PuzzlePhone está a criar o projeto por forma a poder desenvolver um ecossistema de hardware maior ao qual chama de Puzzle Cluster.

Na prática são ‘invenções’ que os utilizadores podem seguir para darem um ainda maior tempo de vida aos componentes do seu PuzzlePhone. Usando vários módulos de PuzzlePhone antigos será possível, por exemplo, construir um drone. Retirando o módulo da câmara fotográfica poderá desenvolver algo parecido com uma GoPro. Ou uma câmara de vigilância para a sua casa. Ou se preferir pode simplesmente dar as suas peças a outra pessoa cujos módulos sejam mais fracos.

Exemplo: usar muitas unidades de processamento dos PuzzlePhone para criar um minicomputador. #Crédito: PuzzlePhone

Sabendo que o espírito e a comunidade maker estão mais fortes do que nunca, não será difícil de imaginar um grande número de projetos paralelos que surgirão no dia em que o PuzzlePhone atingir o mercado.

“Quando partes o monolito, não estás só a permitir que as pessoas o atualizem, mas está a dar uma futura vida às peças do modelo”, defendeu Alejandro, para depois acrescentar: “De um ponto de vista maker acho que é bastante interessante”.

“Se o teu carro é um monolito e o teu pneu rebentar, o que vais fazer? Vais mandar todo o carro para o lixo? Não faz sentido. E depois alguém tem de fabricar todo o carro outra vez. Isso não faz sentido”.

Em setembro deste ano a PuzzlePhone recebeu um prémio da Green Electronics Council, pelas reduções de lixo eletrónico que o seu projeto pode permitir

A analogia feita por Santacreu é boa para entender a vantagem dos smartphones modulares de não obrigarem a trocar de equipamento caso queira apenas atualizar um módulo, mas é exagerada no sentido em que nem o PuzzlePhone permite trocar um único pneu, tem de trocar logo os quatro.

Por exemplo, se imaginarmos que os pneus do smartphone são CPU, GPU, RAM e armazenamento, então se um destes ficar ‘careca’ – como o armazenamento, imagine-se -, terá na mesma de fazer uma troca a três pneus nos quais não queria mexer.

Esta realidade, como veremos já nos parágrafos seguintes, é muito difícil de concretizar. Por isso é que mesmo concentrando vários elementos do smartphone num só módulo, o PuzzlePhone ainda é uma das melhores promessas dos smartphones modulares.

Project Ara abalou a modularidade

Primeiro de uma forma positiva, criando grande entusiasmo e consciencialização sobre o tema. Mais recentemente de forma negativa pois se nem a Google parece interessada em trazer smartphones modulares para o mercado, por que razão outros hão de seguir esse caminho?

Recentemente também houve rumores de que a LG pode estar prestes a abandonar o conceito de smartphone modular, o que deixaria este segmento ainda mais fragilizado. Trata-se de marcas gigantes e com um grande poder de investimento que tentaram a sua sorte, mas não parecem ter gostado do que encontraram.

E quem fica? O que pensa quem fica ‘agarrado’ à modularidade?

“A primeira coisa que pensei quando vi o Phone Blocks [2013] é que era muito porreiro, era apelativo, mas não era realizável. Mas não havia problema pois era uma proposta conceptual de uma pessoa que não estava tão ligada ao desenvolvimento. Já tive a oportunidade de falar com o David Hackens, o fundador da Phone Blocks, acho que fez um excelente trabalho a comunicar o benefício da modularidade”.

“Mas partir o telemóvel em tantas partes, não era um bom balanço entre o que os utilizadores pedem, que é reparar o ecrã, a bateria e atualizar os componentes eletrónicos. Estas são claramente as necessidades, de acordo com várias investigações de mercado. E todas as marcas sabem disto”.

O Project Ara era ambicioso, mas nas suas versões iniciais também podia ser confuso. #Crédito: Google

Alejandro Santacreu Alfonso foi ainda mais incisivo na sua análise.

“As pessoas não estão a acordar de manhã e dizem ‘preciso de um Bluetooth mais rápido’. A quantidade de pessoas que pede isto é tão pequena que não faz sentido o esforço de criar um módulo em separado para o Bluetooth. Todos os módulos consomem ‘terreno’ e mesmo agora que os smartphones são pequenos o suficiente para serem modulares, se modularizares tudo no telemóvel vais acabar com um monstro”.

Apesar de crítico, inevitavelmente o CEO da PuzzlePhone gosta que existam marcas que estão a vender efetivamente smartphones que têm uma proposta de modularidade no seu conceito.

“O que penso é que graças a Deus, entretanto a LG veio com outra proposta de modularidade e também a Motorola com as capas traseiras. É bom haver competição saudável a provar que ainda existe vida em torno desta ideia, não somos apenas nós que estamos numa demanda maluca. (…) Podia ter sido muito pior se o Project Ara tivesse morrido sem qualquer competição”.

Da Finlândia para o mundo

A PuzzlePhone está situada em Espoo, a cidade que ficou conhecida por ser a sede da Nokia. Neste caso era mesmo a sede no sentido mais corporativo, já que as restantes unidades de desenvolvimento e investigação estavam espalhadas por outras cidades do país.

Já lá diz o ditado que há males que vêm por bem e também o fim da Nokia parece estar a proporcionar novas oportunidades. Muitos dos seus funcionários lançaram-se em aventuras próprias, outros juntaram-se a projetos emergentes como é o caso do PuzzlePhone.

Alejandro Santacreu Alfonso não sente qualquer pressão ‘especial’ por estar a tentar reformular o conceito de smartphone a partir de uma localidade com tanta história. Mas admitiu durante a conversa com o FUTURE BEHIND que poderá ser importante para a Europa ter um equipamento destes a ser produzido ‘em casa’.

Este terá sido um dos motivos que atraiu o investimento da Comissão Europeia. Existem outros projetos europeus a dar cartas – pequenas, é verdade – no segmento dos smartphones. A BQ é uma dessas empresas. A Fairphone é outra. A Jolla é outra. Nada que se compare à dimensão dos trabalhos de uma Apple, de uma Samsung ou de uma Huawei. Neste terreno a Europa perdeu a batalha, mas os gostos dos consumidores estão em constante alteração, o que pode permitir encolher a desvantagem para as outras economias mundiais.




“Os tempos estão a mudar em torno do hardware. Há algo a acontecer na Europa e é uma mega-tendência consistente que vai além dos smartphones”, assevera o espalho.

Por fim a questão mais difícil de responder: quando vai mesmo o PuzzlePhone estar disponível no mercado?

“Penso que existe uma boa hipótese de ver o PuzzlePhone a funcionar em 2017, isso não é uma nega total. Mas não quero fazer uma promessa”.

Pelo tom da resposta este lançamento já no próximo ano parece mesmo pouco provável. Significa isso que se o mais lato conceito de smartphone modular interessa-lhe, então terá de sonhar com ele durante mais alguns meses.

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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