Depois de um primeiro texto repleto de informação científica sobre um tema descrito como “pesado” achei melhor aligeirar as coisas. No entanto, se quiserem saber mais sobre transtorno de videojogos e dependência podem sempre clicar aqui.
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Então como podemos aligeirar a temática de saúde mental? Normalizado-a. Falar de saúde mental é falar do ser humano. Isto é algo que a psicologia e os videojogos têm em comum. Pessoas. Quer sejam elas as que criam o jogo ou as que são representadas no jogo ao final do dia tudo está relacionado com pessoas. Devido a isso tudo acaba por estar relacionado com emoções, percepções e até identidade. É isso que vamos explorar: identidade. No entanto, como não se gosta de perguntas fáceis vamos tentar dar a resposta à pergunta: O que é ser Gamer?
Várias vezes ouvimos falar da importância da nossa identidade e da forma como ela pode ser moldada pelo ambiente que nos rodeia. É aí que entra uma coisa chamada identidade social. O nosso auto-conceito é a percepção que temos de nós próprios. Já a identidade social não é nada mais nada menos do que a parte dessa nossa percepção que é influenciada pela nossa ideia de pertença num certo grupo social. Basicamente, é a parte da nossa identidade que é “moldada” pelo facto de nós acreditarmos que fazemos parte de um grupo.
O ser humano tem uma capacidade incrível de segmentar quase tudo ao seu redor criando diferentes grupos com base em características similares entre os seus membros. Existe uma tendência para o fazer de forma a conseguir perceber e navegar “melhor” o ambiente social. No entanto, essa tendência também faz com que o ser humano seja ótimo a criar preconceitos e ideias enviesadas sobre os grupos externos ao seu. Aliás, a teoria da identidade social foi usada várias vezes para analisar comportamentos discriminatórios em casos de sexismo e racismo.
“os Gamers são caracterizados como sendo rapazes adolescentes pálidos, sentados num sofá de uma cave a fazer button mashing.”
No entanto, é importante perceber que não basta termos as características de um certo grupo para esse grupo ter impacto no nosso desenvolvimento de identidade. É necessário que exista uma conexão emocional e uma relevância atribuída a esse grupo. É preciso que eu me veja como parte do grupo e que não seja apenas algo que me é atribuído. Existe uma diferença entre eu me ver como Gamer e os outros dizerem que eu sou Gamer. Isto pode não mudar a minha percepção de pertença no grupo, contudo, pode mudar a forma como os outros me tratam.
Isto leva-nos a uma das míticas batalhas do final do século XX e início do século XXI. A batalha dos Gamers VS não Gamers. Para percebermos um pouco melhor esta divisão entre os 2 grupos temos que olhar para a forma como estes grupos se identificam e se caracterizam.
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Segundo um artigo publicado por William em 2005*, e preparem-se para ficar ofendid@s, os Gamers são caracterizados como sendo rapazes adolescentes pálidos, sentados num sofá de uma cave a fazer button mashing. Parece-me que alguém perdeu um combate de Street Fighter e não soube lidar bem com isso. Mas não estamos aqui para falar do Sr William e a sua perícia em jogos de combate. Até porque Taylor, em 2012, afirmou que as pessoas tendem a considerar os Gamers como pessoas que tendencialmente apresentam dificuldades sociais e que passam demasiado tempo dentro de casa. Ah, e que são, normalmente, homens. Mais uma vez, em 2020, um estudo revelou que pessoas que se identificam como “não Gamers” tendem a ver o outro grupo como preguiçosos, violentos, introvertidos, irresponsáveis MAS (um grande MAS) inteligentes.
Através destes estudos e de tudo que vimos nos meios de comunicação e nas redes sociais, podemos perceber que a percepção de Gamer por parte de pessoas externas à comunidade tende a ser menos positiva e centrada em vários estereótipos. Contudo, isto está longe de ser a verdade. Varias investigações, incluindo a da Entertainment Software Association (2019)*, indicam que tendencialmente o número de Gamers do sexo masculino e feminino é bastante similar. Embora normalmente as mulheres tendam a apresentar preferência por jogos mais rápidos e despendam de menos tempo para jogar.
Aqui seria interessante saber quanto desse “tempo” é impactado por normas de género tradicionais que impactam mulheres e homens de forma diferente. Até porque, olhando mais uma vez para coisas que são impactadas por sexismo, as mulheres embora representem cerca de 50% da comunidade Gamer continuam a ter menos personagens que facilitem a sua identificação. Desta forma, e com poucas personagens do sexo feminino, as mulheres tendem a apresentar menores níveis de conexão com as personagens nos mundos digitais. Embora essa tendência pareça estar a desaparecer.
“Verdadeiros Gamers não jogam Mobile”
Mas não são apenas os “não Gamers” que absorvem algumas destas ideias estereotipadas das características dos Gamers. A própria comunidade também o faz. Uma das características “principais” de ser um gamer e pertencer ao sexo masculino. Este foi um estereotipo que durante anos foi absorvido pela indústria e que poderá ter dado origem a muitas das atrocidades que estamos agora a ver sair de companhias como a Activision-Blizzard, Ubisoft, Riot entre outras. Mas isto não é um problema apenas das companhias.
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Este tratamento das mulheres e esta interiorização do que é ser Gamer impacta a própria identidade da mulher dentro desta comunidade. Num estudo realizado por Burch e Wiseman* apenas 35% das adolescentes inquiridas identificaram-se como Gamers comparado a 70% dos rapazes. Já num estudo de 2020 o número cai para 10%. Existe uma tendência para ser exigido da mulher uma prova extra do seu valor como Gamer. Não chega jogar, tem que ser boa a fazê-lo e por muito capaz que seja poderá não ser o suficiente porque ao final do dia será sempre uma poser. Isto faz com que o sentido de pertença não seja criado. Aí, o ser Gamer deixa de ser sobre os jogos que se joga ou o tempo que se joga e passa a ser uma nova forma de discriminação com base em características que em nada estão relacionadas com o fantástico mundo dos videojogos.
Mais recentemente, com o aumento do número de aparelhos móveis que permitem jogar, deu-se início a uma nova batalha na comunidade. “Verdadeiros Gamers não jogam Mobile”. Com o boom dos jogos mobile e até a chegada de alguns Esports a esta plataforma vimos um crescimento significativo no número de pessoas que passam tempo a jogar no seu telemóvel. No entanto, estas pessoas tendem a identificar-se menos como Gamers pois é criada uma ideia de que Gamers jogar em Computadores ou consolas como Xbox ou Playstation. Já a Swtich navega o seu próprio universo como é típico da Nintendo.
No entanto, devido ao seu poder histórico jogar Switch tende a ser mais bem-visto que jogar no telemóvel embora os jogos possam até ser os mesmos. Do nada começamos a criar categorias dentro da comunidade em que uns são mais Gamers que outros com base no que jogam ou onde o fazem. Foi criada uma hierarquia em que no topo está aquela que é chamada de Master Race, mesmo que utilize apenas um Magalhães.
Isto leva-nos ao tópico de Gatekeeping. Gatekeeping é uma necessidade de policiar, controlar e limitar o acesso de outros a certos grupos. Neste caso funciona quase como um grupo de vigilantes que tentam definir quem deve, ou não, ser chamado Gamer com base nos seus próprios critérios, critérios esses que por vezes são baseados nas ideias estereotipadas que falamos previamente. Este policiamento, para além de danoso para a indústria é também danoso para a comunidade, pois fomenta a criação de subgrupos alimentados por ideias de preconceitos e atribui poder, embora de forma irrealista, aos que pensam que têm a obrigação de conservar a “essência” do que é ser Gamer.
No entanto, é importante perceber que este grupo representa apenas uma minoria bastante vocal dentro desta comunidade. É importante perceber que esta comunidade é também a mesma que diariamente organiza eventos de angariação de fundos para várias problemáticas. É a comunidade que organiza eventos nos jogos para celebrar a vida de um amigo que perderam e em que milhares de pessoas que nunca o/a conheceram aparecem apenas porque partilhavam a paixão por aquele jogo. É a comunidade que adora o Henry Cavil… não preciso de acrescentar mais nada a esse ponto.
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Isto demonstra também que ser Gamer é muito mais do que simplesmente jogar videojogos. É pertencer a uma comunidade que partilha uma linguagem própria. Que percebe que o Cake is a Lie e sorri quando vê uma atleta olímpica com um pendente de um lobo. Ser Gamer não é definido por nada e, em simultâneo, definido por um monte de coisas. No entanto, o mais importante de tudo para sermos Gamers é vermo-nos e identificarmo-nos como tal e, acima de tudo, sentirmo-nos aceites por isso mesmo.
*Ćwil, M. & Howe, T. (2020) Cross-Cultural Analysis of Gamer Identity: A Comparison of the United States and Poland
Entertainment Software Association . (2019). Essential facts about the computer and video game industry.
Taylor, T. L. (2012). Raising the stakes: E-sports and the professionalization of computer gaming. MIT Press.
Williams, D. (2005). A brief social history of game play. In DiGRA 2005 Conference: Changing Views – Worlds in Play,