Ao longo de várias décadas a conversa sobre videojogos tem sido bastante polarizante. Poucos são os temas dentro desta conversa, que não levantam vozes positivas ou negativas sobre o seu impacto. Na década de 90 tivemos a grande discussão sobre a violência nos videojogos que continua a permear todo o diálogo até aos dias de hoje. Contudo, a conversa ganhou agora num novo rumo e falamos agora da “dependência” que estes jogos criam.
Admito que tenho sempre alguma relutância em falar deste tema. Normalmente porque quando me pedem para o fazer fazem-no na tentativa de validar uma narrativa. Poucas são as vezes que isso acontece na procura de informação ou até na tentativa de iniciar um diálogo sobre aquilo que são as provas cientificas em torno desta temática. Além disso, para bem ou para o mal, são constantemente utilizadas expressões que incentivam a uma resposta emotiva aquando da promoção destes temas. Quantas vezes vemos a ligação de videojogos a problemas de saúde mental, violência, consumo de drogas e álcool entre outros? Lembro-em até de uma mítica expressão que comparava os videojogos ao consumo de heroína.
A verdade é que muitas das vezes essas expressões ou comparações sem feitas sem conhecimento de causa e fundadas em preconceitos. Outras vezes são feitas tirando a informação do seu contexto inicial. Contudo, é preciso ter em atenção que isto não significa que os videojogos não possam causar dependência… mas com isso em mente, lembre-se que até o exercício o pode fazer.
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No dicionário de Lingua Portuguesa dependência é caracterizada como sendo um “Estado de necessidade que resulta do consumo contínuo e repetido de drogas ou derivados”. Esquecendo a parte das drogas e derivados, podemos focar na parte essencial da definição. Esta definição é bastante similar à que foi apresentada pela Organização Mundial de Saúde quando em 2017 apresentou aquilo que apelidou de Gaming Disorder, ou Transtorno de Videojogos numa tradução mais literal.
Este novo transtorno é caracterizado por uma incapacidade de resistir a uma vontade intensa para interagir com videojogos. Por sua vez isto deve ser analisado tendo em conta a incapacidade de controlo sobre factores como tempo de jogo, contexto e frequência com que se joga, prioridade crescente dada aos jogos em detrimento de outras atividades e por fim, a manutenção do jogo mesmo perante situações com consequências negativas (podemos falar aqui de comandos partidos?).
“Este factor não pode ser visto como prova para a existência de uma relação entre jogar videojogos e desenvolver dependência.”
Uma das grandes críticas a estas diretrizes é a sua falta de especificidades nos seus critérios e até alguma falta de objetividade. Aliás, segundo Kardefelt-Winther (2016), quando esta definição foi apresentada à comunidade cientifica foi criticada devido à falta de conhecimento sobre o que se queria apresentar com este transtorno. Para piorar ainda mais as coisas, essa mesma comunidade cientifica pediu ainda que esta transtorno fosse apagado devido à falta de pesquisa e por acharem que tal coisa poderia ser mais danosa que benéfica tendo em conta a falta de informação e subjetividade dos critérios e tratamentos. No entanto, a Organização Mundial de Saúde decidiu ir contra as sugestões da comunidade cientifica e seguiu em frente com um novo transtorno que não apresenta diretrizes claras para o diagnóstico nem tem sustentação cientifica para existir por si só.
Contudo, isto não quer dizer que não existe dependência. Quer dizer sim que os critérios que são apresentados atualmente não fazem parte de um consenso cientifico e por isso podem ser utilizados sem precisão. Isto pode levar a diagnósticos prematuros e como a OMS utilizou como sua base aquilo que são os pilares da dependência de substâncias fica demasiado fácil fazer o paralelismo entre as duas.
Mas olhemos para o factor horas como um exemplo de subjetividade. Jogar uma hora por dia para muitos poderá não ser visto como tempo excessivo. No entanto, algumas pessoas não jogam durante a semana e jogam apenas ao fim de semana. Logo o “uma hora por dia” poderia passar demasiado para essas pessoas. Agora adicionamos o grupo de pessoas que jogam duas horas por dia. Para esses os que jogam uma hora não jogam assim tanto. Para complicar mais ainda passamos a streamers e atletas de Esports. O jogar uma ou duas horas é quase nada porque eles passam por vezes 8 horas diárias a jogar. O conceito do que é demasiado é subjetivo. Além disso, olhemos para os videojogos à luz de outras atividades. Por exemplo, leitura. Se alguém disser que lê durante quase todo o seu tempo livre, ou até sempre que pode, não falamos de dependência literária. O mesmo acontece com o exercício ou qualquer outra atividade que seja considerada “aceitável”.
“Mas existem estudos que comprovam que jogar videojogos aumentam os niveis de dopamina no cérebro.” Dizem vocês muito bem. A verdade é que os videojogos produzem um aumento de dopamina da mesma forma que comida, sexo e até drogas produzem. No entanto, a produção de dopamina é bem menor com os jogos (aumento de 100% para videojogos, 150% com comida, 300% com o sexo e 1000% com metanfetaminas) (Koepp et al., 2002; Allerton e Blake, 2008). Além disso, ainda não existe uma compreensão total do efeito da dopamina no comportamento aditivo. Por isso, este factor não pode ser visto como prova para a existência de uma relação entre jogar videojogos e desenvolver dependência.
No entanto, podemos olhar para o factor psicológico que pode ser mais fácil na compreensão daquilo que poderá ser considerado “comportamento aditivo”.
Em janeiro de 2021 quando escrevi sobre a ligação dos videojogos à violência referi a Teoria da Autodeterminação para explicar a ligação emocional que os jogadores podem ter com os jogos. Essa mesma teoria pode ser utilizada para perceber um pouco mais o que poderá fazer com que alguns jogadores tenham uma maior tendência a encaixar nos critérios apresentados para diagnóstico.
“A primeira categoria apresentada pela Teoria de Autoderminação é a Autonomia. Isto engloba a capacidade de sentir, controlar e escolher o que fazemos (Przybylski,Rigby e Ryan, 2010). ”Num jogo isto pode ser algo como escolher como abordar um confronto ou tomar a decisão que vai mudar a história da personagem. O escolher a aparência da personagem ou poder criar uma Build também estão ligados a este fator pois contribuem para a percepção de escolha e controle sobre o desenrolar dos eventos”(Pimenta, 2021).
“A segunda categoria é Competência. Sempre que enfrentamos um desafio num jogo e o conseguimos superar há essa sensação (Przybylski,Rigby e Ryan, 2010 citted in Pimenta, 2021). Aliás é um dos fatores pelo qual os jogos da From Software são tão populares. Estes jogos apostam no crescimento do jogador e nessa perceção de competência e superação. O jogador tem tudo que precisa à sua disposição, mas parte de si utilizar os recursos para superar a situação. No entanto, os jogos precisam de encontrar um balanço em que o jogo é desafiante, mas nunca parece impossível. O mesmo acontece em jogos como FIFA ou Call of Duty que oferecem recompensas constantes ao jogador de forma a fazer com que este sinta que está a alcançar algo mesmo quando apresenta um mau resultado.” (Pimenta, 2021)
“Por fim temos o Relacionamento. Este fator está ligado à comunidade e ao sentirmo-nos como parte de um grupo (Przybylski,Rigby e Ryan, 2010 citted in Pimenta, 2021). Este terceiro fator apela à necessidade básica do ser humano em pertencer. Nos videojogos isto pode ser visto através das comunidades que se criam à volta de um jogo seja para partilhar experiências com amigos depois de jogarmos ou organizar um jogo multiplayer.” (Pimenta, 2021)
“Os videojogos podem ser uma ótima forma de desenvolver competências cognitivas, emocionais e sociais…”
Com isto em mente podemos então dizer que os videojogos poderão preencher as três categorias funcionando assim como motivadores. Além disso, quando uma pessoa consegue preencher essas três categorias no mundo virtual ou online, mas não o consegue fazer no mundo real poderá sentir-se mais motivado a passar mais tempo nesse ambiente. Aliás, Allison e Anderson (2018) afirmaram que recentes investigações concluirão que jogadores que estão a ter as suas necessidades supridas no mundo virtual e não no mundo real têm mais tendência a preencher os critérios para Transtorno de Videojogos. Além disso, alguns estudos apresentam uma correlação entre videojogos e problemas emocionais e psicológicos. Isso poderá querer dizer que o uso problemático de videojogos pode ser por vezes a consequência de outros problemas ou a sua razão. Pessoas com Défice de Atenção, depressão e ansiedade podem demonstrar maior uso problemático de videojogos (Carras, Kowert e Quandt, 2021).
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A verdade é que existem pessoas que precisam de apoio devido ao seu uso problemático dos jogos. Contudo, a necessidade de uma categorização e os critérios para que esta exista está longe de ser validade. Além disso, esse uso pode ser visto como uma consequência de outras problemáticas e não a sua origem. Existe uma tendência para o que é apelidado de pânico moral em que os videojogos são discutidos como sendo o vilão em vez de se abrir a porta para o diálogo. O mesmo acontece com a discussão em torno dos comportamentos violentos/agressivos embora a investigação aponte para que a sociedade ocidental tenha tido uma diminuição de comportamentos violentos ao longo das últimas três décadas (Coulson and Ferguson, 2016) embora o consumo de jogos tenha vindo a aumentar.
Se em algum momento acharem que algo está a impedir o vosso funcionamento e desenvolvimento procurem apoio profissional. Os videojogos podem ser uma ótima forma de desenvolver competências cognitivas, emocionais e sociais, mas cada caso é um caso e não deve existir pressão para se validar ou rejeitar algo com base nas opiniões dos que nos rodeiam.