– “A Viv está aí no seu bolso, não está?”
– “Sim está.”
Foi a última pergunta que fiz a Adam Cheyer, mas foi a escolhida para abrir este artigo. Porquê? Porque estive tão perto e ao mesmo tempo tão longe de uma tecnologia que pode revolucionar a forma como interagimos com uma grande parte dos equipamentos de eletrónica. Seja um smartphone, um computador, um relógio, um carro ou até um sistema de realidade virtual.
A Viv é uma plataforma de inteligência artificial que está a ser desenvolvida pela Viv Labs. Os seus fundadores – Adam Cheyer, Dag Kittlaus e Chris Brigham – foram as pessoas que criaram a assistente digital Siri que agora marca presença nos iPhone e nos iPad.
O projeto Viv pode ser visto como uma evolução do conceito da Siri. “Com o Viv estamos a tentar criar o próximo grande paradigma dos interfaces de utilização. Dizemos que a cada dez anos a forma como as pessoas interagem com a computação muda. Na década de 1980 foi o Windows. Em 1990 foi o browser de Internet. Nos anos 2000 foram o smartphone e as apps. Mas já quase passaram dez anos desde o smartphone [referência ao lançamento do iPhone em 2007] e pensamos que vem aí um novo interface”, disse Adam Cheyer em entrevista ao FUTURE BEHIND.
O empreendedor norte-americano está em Portugal a propósito da conferência Go Youth 2016. O timing da sua vinda a Portugal foi quase perfeito: é que Adam Cheyer está prestes a levantar o véu à sua ambiciosa criação. Portanto de certa forma nunca estivemos – eu, as outras pessoas que travaram com Cheyer e de certa forma todos os portugueses – tão perto de uma mudança tecnológica tão radical.
O próprio engenheiro admite que nem sequer devia estar em Portugal. “Não tinha tempo. Disse que não vinha. Mas estou cá porque foram muito insistentes. Eu não devia estar aqui”, explicou perante uma plateia de dezenas de pessoas que estiveram no LX Factory, em Lisboa, para assistir às apresentações do evento.
O escritório da Viv Labs em San José, Califórnia, nos EUA, está um pandemónio e a presença de Adam Cheyer em Portugal apenas torna tudo um pouco mais stressante. Mas infelizmente não foi em Lisboa que a Viv saiu da caixa pela primeira vez. Isso está reservado para daqui a semana e meia, dia 9 de maio, dia de abertura do evento TechCrunch Disrupt NY.
“Queremos ser o que a Google foi para a Internet. Ou o que a Apple AppStore foi para o mobile. Queremos desempenhar um papel semelhante. Queremos trabalhar com parceiros de distribuição para colocar o Viv na dianteira de todos os relógios, carros, televisores e sistemas de som. E no processo queremos dizer aos programadores ‘Vocês têm um Website, vocês têm uma aplicação móvel. Liguem-nos à Viv, nós damos as ferramentas e o incentivo financeiro para que agora possam fazer dinheiro com este canal’. E ao ligarem-se eles podem vender os seus conteúdos e serviços com a ajuda da assistente”, aprofundou um pouco mais Adam Cheyer sobre o seu novo projeto.
Como vai funcionar a Viv?
Na prática a Viv é uma assistente digital que pode ser integrada em qualquer equipamento. Uma das diferenças está no facto de ser uma plataforma aberta e para a qual os programadores podem e devem contribuir, sob pena de o projeto falhar. Como? Ligando as suas aplicações e serviços à Viv.
Esta plataforma de inteligência artificial terá capacidade para escrever código sozinha. Desta forma conseguirá ir buscar informações distintas a aplicações igualmente distintas. Mas graças a esta sua capacidade – vista por poucos e a qual não pude atestar – será capaz de dar resposta a pedidos complexos.
“Arranja-me um voo para Dallas num lugar onde o Shaq podia caber” foi um dos exemplos dados em 2014 à revista Wired, uma das primeiras publicações a falar sobre a Viv. Além de ter de pesquisar por voos, da referência ao ponto de chegada tendo em conta o ponto de partida, tem ainda de saber que Shaq é a abreviatura do antigo jogador de basquetebol Shaquille O’Neal e tem de descobrir quanto mede. Tudo numa fração de segundos.
Parte do segredo da Viv estará na abertura ao conhecimento que qualquer um lhe pode injetar, tornando-a num cérebro de alcance mundial. A descrição é da própria empresa norte-americana.
“É um pouco como a Wikipédia: nenhuma empresa podia construir todas as páginas da Wikipédia e traduzi-la para todas os idiomas. Mas se tornares a plataforma aberta e montares os incentivos que conduzem à qualidade, então a Wikipédia pode estar em qualquer idioma e em qualquer serviço. É demasiado para um. Mas podes prender-te à inteligência coletiva do mundo para fazê-lo. Estamos a construir a Viv para que cada funcionalidade, cada idioma, seja feito por programadores externos”.
Um exemplo para reforçar a teoria da Viv Labs: quando o iPhone saiu tinha oito aplicações, todas desenvolvidas pela Apple. Mas quando a AppStore abriu todas as indústrias mudaram. Agora todas têm aplicações.
Adam Cheyer explicou ainda que de origem a Viv terá “um conjunto de funções, funcionalidades e parceiros”. Mas a dependência relativamente ao trabalho dos programadores não deixa de ser um risco, sobretudo sabendo que quem tem mais tradição nessa categoria são empresas como a Microsoft, Apple, Facebook, Google e Amazon.
Concorrência feroz
Estes nomes não foram escolhidos por acaso. Cada uma destas empresas ou tem um assistente digital ou está a apostar em plataformas abertas de inteligência artificial para a criação de bots.
A Apple tem a Siri – por agora. A Google tem o Google Now. A Amazon tem a Alexa. A Microsoft tem a Cortana e a sua iniciativa de bots. O Facebook também tem uma API para bots e andou durante algum tempo a ‘brincar’ com uma assistente chamada M.
“É uma área muito importante. Todas as grandes empresas estão a tentar encontrar um caminho. Porque todos estão a ver que as aplicações e os smartphones estão a começar a baixar um pouco. Ninguém vai à AppStore e diz ‘que nova aplicação posso encontrar hoje?’. As pessoas querem menos aplicações nos seus telemóveis. E se és uma empresa nova a fazer uma aplicação tens uma fila de dois milhões de projetos à tua frente até que a tua aplicação seja notada”.
“Penso que todas as grandes empresas aperceberam-se que o mundo está a mudar. E a Viv vai tentar estar em controlo desta nova experiência. O Satya Nadella [diretor-executivo da Microsoft] disse que a assistente é o próximo sistema operativo. A Microsoft pensa em termos de sistema operativo, mas acho que ele tem toda a razão”.
As respostas de Adam Cheyer são longas e quase não podem ser cortadas. Cada palavra é uma extensão de algo mais, como se o próprio engenheiro de inteligência artificial já tivesse integrada uma versão da Viv.
“O que nós achamos que é preciso é um assistente que possa interagir em todos os dispositivos. Pois se tiveres os bots do Facebook ou a Alexa da Amazon e por aí fora, então agora tens mil assistentes. Tens de lembrar os seus nomes, tens de os encontrar e fazer download, e tens de lembrar os respetivos comandos. Para nós isto não é escalável”.
“Talvez esteja a viajar no meu carro e digo ‘Viv, podes fazer-me isto?’ e quando chego a casa digo ao televisor ‘podes avançar para o próximo passo’. Queres uma conversa contínua entre todos os dispositivos”.
Da promessa aos atos já não falta muito tempo. Além da apresentação marcada para breve, Adam Cheyer garantiu na entrevista ao FUTURE BEHIND que pouco tempo depois já será possível encontrar a assistente Viv em equipamentos de origem ou então disponível para download.
O peso do passado
Querer ser a próxima grande plataforma de computação é um objetivo de proporções épicas. Querer ser tão importante como o Windows, os browsers ou os smartphones é algo que não está ao alcance de todos os projetos.
Adam Cheyer está convencido que com a sua equipa de especialistas encontrou a solução para criar ‘one assistant to rule them all’. “Vai tornar-se no maior paradigma que já existiu. É uma automatização das melhores experiências da Web, do mobile e dos dispositivos que existem por aí”.
Mas será preciso viver e até lutar com um dos seus grandes sucessos: a Siri. A história que antecedeu a compra da Apple foi ontem um pouco partilhada com todos.
Em fevereiro de 2010 a Siri chegou à loja da Apple como uma aplicação independente. Duas semanas depois da estreia na AppStore, Adam Cheyer recebe uma chamada da tecnológica. “Que empresa tão atenciosa, liga para falar com os programadores”, pensou enquanto lutava para desbloquear o smartphone e não perder a chamada.
Viria a descobrir segundos depois que era o próprio Steve Jobs, então diretor executivo da marca da maçã, quem estava do outro lado da linha. Jobs convidou os fundadores da Siri a passarem em sua casa no dia seguinte. Fez uma proposta de compra e foi recusada.
Dois meses depois a Apple voltou à carga e o negócio concretizou-se. A imprensa especializada fala numa compra avaliada em 200 milhões de dólares.
O que é mais curioso no meio de tudo isto é que Cheyer e os seus colegas decidiram avançar com o desenvolvimento da Siri pouco depois de o iPhone ter sido lançado. Perceberam que a Apple dominaria o segmento dos smartphones pois tinha acabado de mudar por completo o paradigma. Decidiram então criar uma ferramenta que outras empresas e fabricantes de telemóveis podiam usar para tornar os seus equipamentos mais competitivos relativamente ao iPhone. A ironia é que foi mesmo a Apple quem ficou com a Siri.
Agora é uma das ferramentas diferenciadoras do sistema operativo iOS e é um dos motores de interação em categorias de produto como o Apple Watch ou a Apple TV.
“Estou muito orgulhoso com o que nós conseguimos com a Siri. Infelizmente escolhi sair há pouco mais de três anos. Jã não faço parte do projeto. Eles têm a sua visão sobre como está a evoluir. Penso que alguns elementos ficaram muito melhores, havia outros que poderia ter feito diferente. Mas acho que a Apple está a fazer um grande trabalho e estou entusiasmado por ver a sua evolução”, comentou por fim Adam Cheyer.
Mas a Siri já está em milhões de dispositivos. A Viv está apenas num punhado deles e acima de tudo é isso que torna o projeto tão especial neste momento.