Em 2004 Neil Harbisson estava a ter dificuldades em renovar o seu passaporte. Isto porque segundo as regras do Reino Unido, não são permitidos equipamentos eletrónicos nas fotografias de identificação do documento. Acontece que na altura já Neil Harbisson tinha instalado, o que na sua opinião, era uma nova parte do seu corpo.
Harbisson nasceu com acromatopsia, uma síndrome que também é conhecida como ‘cegueira de cores’. Isto significa que apenas consegue ver a preto e branco. Harbisson não sabe como é a cor verde, nem o amarelo, nem o dourado. Segundo o próprio, ver apenas a preto e branco tem algumas vantagens, como melhor visão noturna e visão com maior nitidez, mas não dá para fugir ao facto de que vivemos num mundo de cores.
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Após alguma investigação, chegou à conclusão que as cores e os sons têm um ponto em comum: frequências. As cores não são mais do que diferentes frequências de luz, enquanto o som representa também diferentes frequências acústicas. Porque não misturar os conceitos para que pudesse ouvir as cores?
Foi aí que Neil Harbisson decidiu criar a tal nova parte do seu corpo: uma antena com um sensor de imagem na ponta. Este sensor de imagem lê a frequência das cores, informação que é depois enviada para um conversor. Aí a informação da luz é transformada em frequências sonoras.
Estas frequências sonoras são ouvidas por Harbisson através de vibração craniana – tem um pequeno módulo cravado no crânio para surtir este efeito. O que hoje é um produto tecnologicamente mais avançado e visualmente polido, em 2004 era ainda bastante rudimentar.
Era por isso que as autoridades do Reino Unido não queriam revalidar a emissão do passaporte – o sistema de Neil Harbisson não respeitava as regras definidas para os passaportes. “Isto não é um equipamento eletrónico, é uma parte do meu corpo”, respondeu incessantemente o irlandês.
Depois de alguns avanços e recuos, a fotografia acabou por ser aceite. Em teoria e a partir desse momento, Neil Harbisson passou a ser a primeira pessoa a ser reconhecida oficialmente por um governo como um ciborgue. “Considero-me um ciborgue porque estou biologicamente fundido com a tecnologia”, disse ontem Neil Harbisson durante uma passagem por Portugal, a propósito do SAS Fórum.
Já com mais de uma década enquanto ciborgue ‘oficial’, Harbisson tem sido uma das pessoas que mais tem puxado pelo desenvolvimento do conceito de ciborgue. A imiscuição da tecnologia com o corpo humano representa, na sua perspetiva, uma nova etapa evolutiva.
O irlandês de 34 anos não tem apenas um sensor de imagem que lhe permite ouvir as cores – também já tem um dente que lhe permite comunicar remotamente com a sua parceira ciborgue Moon Ribas e tenciona instalar um novo órgão que lhe vai sincronizar o seu cérebro com o efeito de rotação da Terra. O objetivo deste novo projeto é depois tentar manipular a perceção de tempo, naquele que vai ser um desafio artístico à Teoria da Relatividade de Albert Einstein.
Neil Harbisson é também o presidente da Fundação Ciborgue, uma organização que pretende não só ajudar novas pessoas a aderirem a esta nova tendência de evolução humana, como também luta pela criação de direitos que protejam os ciborgues na vida em comunidade – Harbisson já foi muitas vezes barrado em cinemas por pensarem que ia gravar o filme com a sua antena.
Tivemos a oportunidade de falar com o homem que está a tentar massificar aquela que provavelmente será uma das grandes tendências de futuro – da mesma forma que atualmente as pessoas adicionam piercings e tatuagens ao corpo, no futuro vão acrescentar novos órgãos para poderem ter novos sentidos e novas sensações.
Depois de várias etapas evolutivas como o Homo Habilis, o Homo Erectus e o Homo Sapiens, será que chegou a hora do Homo Harbisson?
Primeira questão: qual é o som da minha camisola?
Hmmm.. [aponta o sensor para a camisola]. É C-Sharp, por isso está próximo ao Lá sustenido. Devias estar a vestir vermelho e azul, pois isso seria Fá e Dó, portanto FA-DO, seriam duas cores muito mais portuguesas.
Como é ser-se um ciborgue? Como tem sido toda a experiência até agora?
Não sei. Basicamente mudei o meu sentido de identidade. A minha própria perceção, de quem sou, mudou. Fundir a tecnologia não é algo superficial, muda o meu sentido de identidade e muda a minha perceção da realidade. Afeta aquilo que sinto e como me sinto.
É profundo. Vês a vida de forma diferente, porque de repente a realidade torna-se nova quando tens um novo sentido. O que tu pensavas que era uma repetição, todos os dias a mesma coisa, todos os dias torna-se novo graças ao novo sentido. É uma nova forma de explorar o planeta, em vez de viajares para outros países, basta acrescentares outro sentido e de repente estás a descobrir o planeta do zero outra vez. É a parte entusiasmante.
Quanto mais velho fores, mais os teus sentidos podem ser desenvolvidos. Se continuares a evoluir a tecnologia durante a tua vida, uma parte de ti continua a evoluir porque a tecnologia continua a evoluir. Isso também é entusiasmante.
A tecnologia tem evoluído bastante e estamos rodeados de tecnologia nas nossas vidas. A aceitação social é diferente agora quando comparada com o início?
Sim. Em 2004 as pessoas riam-se ou pensavam que era uma piada. Elas não acreditavam em mim no início, eu dizia que era para ouvir cores, eles pensavam que não era sério, que era uma brincadeira. Ou que era uma antena e que não era implantada, pensavam que era um wearable, algo que simplesmente estava a usar na cabeça.
As pessoas não conversavam. Não havia conversas sobre o problema. E se me identificasse como ciborgue, as pessoas riam-se, ao início pensavam que era a brincar.
Agora as pessoas levam mais a sério. Existe mais debate sobre o tema. As pessoas agora têm uma opinião. Em 2004 não havia uma opinião sobre isto, penso que havia muito silêncio.
Alguma vez te sentiste triste com a reação das outras pessoas?
Triste? Não. Irritado? Às vezes é irritante, há pessoas que conseguem ser bastante intolerantes e irritantes, depende daquilo que me dizem. Se tocarem fisicamente no sensor também é aborrecido.
Outra questão que gostava de perceber está relacionada com a atualização de hardware. É algo que fazes? E como o fazes?
Existem duas coisas: as atualizações de software melhoram a minha perceção das cores e a atualização de hardware seria sobre melhorar esta nova parte do corpo. Ambas estão em constante evolução, não existe um sentido final ou parte do corpo final, continuam a evoluir.
Eu faço-o em colaboração com estudantes, acima de tudo. Em algumas ocasiões há pessoas relacionadas com o design também. É uma colaboração normalmente com pessoas muito jovens.
Já consegues ouvir mais de 300 cores, ouves os infravermelhos e os raios ultravioletas. Também tens aquele dente especial do qual falaste. Qual é o próximo passo para ti enquanto ciborgue? Como te imaginas no futuro?
O meu sentido de tempo é importante agora. Vou ter um órgão para o sentido do tempo, que deve permitir mudar a minha perceção do tempo. Da mesma forma que consegues criar ilusões óticas porque tens um olho, devo criar ilusões de tempo porque tenho um órgão para o tempo.
Mas depois disso vão existir outras coisas que quero ter. Quando for velho, quando tiver 70 ou 80 anos, quero ter uma cauda. Não quero perder o meu equilíbrio. Ter uma causa ajuda a ter um melhor equilíbrio. Se as pessoas idosas tivessem caudas não cairiam tanto. Acho que as pessoas idosas deviam ter caudas. Se atualmente uma pessoa de idade cair, é mau porque pode partir algo e tudo é complicado quando tens 80 anos e cais.
Acho que vou acabar por ter uma cauda.
Outra dúvida está relacionada com a segurança. Esse sistema é à prova de hackers? Um hacker pode interferir de alguma forma com o teu sensor?
Sim, teres um sentido com ligação à internet significa que podes ser fisicamente pirateado. Durante todos estes anos só aconteceu uma vez, alguém pirateou-me fisicamente, alguém enviou-me uma imagem para a minha cabeça e não foi uma das cinco pessoas que o podem fazer.
Mas gostei, não foi uma má experiência ser pirateado. Se fosse irritante podia sempre ter parado a ligação à internet. E por isso é que criamos a Declaração de Direitos Ciborgues, pensamos que devemos ser protegidos de hackers pela lei.
Devia haver uma forma de decidires quem pode entrar na tua cabeça. Agora não há leis que protejam especificamente isso. Uma das leis ciborgues que apresentamos recentemente é esta, o direito a decidir quem pode entrar no teu corpo e na tua mente.
Também estás a trabalhar com a Fundação Ciborgue. Há muitas pessoas a irem ter convosco e a pedirem ‘gostava de fazer isto, gostava de fazer aquilo’?
Este é o Manel [acompanhou Harbisson na viagem a Portugal], é residente na Fundação Ciborgue. Ele está a desenhar o seu próprio sentido. Ele vai ter um sentido relacionado com a meteorologia, ele vai sentir a meteorologia. Se chover, ele sabe que vai chover. Ele vai sentir as diferenças de pressão que lhe vão permitir desenvolver um sentido para a meteorologia.
Agora temo-lo como residente, mas normalmente temos outras pessoas que ajudamos a desenvolver os seus próprios sentidos.
Fazes ideia de quantas pessoas já ajudaram?
Não porque já fizemos workshops em universidades e não sei quantos já fizemos. Houve muitos workshops desde 2010 em muitos sítios do mundo, em colaboração com as universidades. Ajudamos muitas pessoas a desenvolver um protótipo e eles usam o protótipo do sentido, mas são sentidos externos. Nenhum deles foi implantado ainda. Mas ajudamo-los a criar sentidos externos.
Relativamente aos direitos dos ciborgues, como achas que os governos e quem faz as leis reagiriam neste momento? Por exemplo, se pedisses leis para ciborgues ao Governo português, qual achas que seria a sua posição?
Acho que diriam que ainda não é o tempo certo. Talvez primeiro se focassem em leis robóticas, que é algo com o qual já colaborei com a Comissão Europeia, numa comissão da qual fiz parte e onde falámos de leis para robôs.
Mas sim, dentro de alguns anos vai ser necessário falar de leis para ciborgues. Os governos precisam de estar preparados para que os seus cidadãos sejam eles próprios tecnologia. Os governos não estão conscientes de quão rápido isto vai acontecer.
Tecnologia não vai ser um computador numa casa, vai ser o corpo. Isso precisa de ter, pelo menos, alguns direitos e algumas leis a regular o uso destes sensores e destes órgãos.
O corpo é o próximo grande gadget?
A mente, a mente é o projeto grande gadget. Tudo pode ser resolvido se controlares a tua mente. Até a imortalidade é algo psicológico. A idade é algo psicológico. Se queres viver 250 anos poderias fazer isso se fizesses com que o teu cérebro acreditasse que podes viver 250 anos.
O cérebro permite-nos fazer o que queremos, porque podemos enganar o nosso cérebro basicamente, modificar como o nosso cérebro reage à realidade. Penso que o cérebro vai ser o principal protagonista do século XXI.
No futuro o que vai ser mais importante para os ciborgues: as atualizações de hardware ou de software?
Ambas. No caso do hardware, será impresso em 3D no nosso ADN, esta antena será orgânica. O hardware será feito de pele e músculos. Assim que tivermos impressoras 3D de ADN podemos imprimir novas partes do corpo. Não vamos precisar de novos chips, podemos adicionar novos sensores ao modificarmo-nos geneticamente.
O software e o hardware vão ser bastante orgânicos. Vão ser adicionados geneticamente ao nosso próprio ADN. Vamos ser 100% orgânicos, mas isso será no pós-ciborguismo, onde o lado físico da tecnologia já não estará lá.