O ano da vida em direto

No dia 30 de setembro a aplicação Meerkat era removida da AppStore. Por que razão este momento foi importante? Foi a aplicação Meerkat que iniciou a contenda das transmissões de vídeo em direto como uma componente social do dia a dia. Por que razão é isto importante agora? Porque não deixa de ser curioso, irónico e até mordaz que a empresa que iniciou as hostilidades no live streaming tenha sido a primeira a tombar.

O ano de 2016 foi o ano do live streaming social. Foi também o ano de muitas outras tendências tecnológicas – inteligência artificial, sistemas de condução autónoma, chat bots -, mas do lado social quem saiu a ganhar foram as transmissões em direto e todos os que as usaram.




Não confundir o live stream social com o live stream tradicional. O segundo há muitos anos que por aí anda – basta pensar no Twitch como uma das maiores plataformas de transmissões de vídeo em direto do mundo e como já há dois anos despertou o interesse da Amazon.

Se houve assim tanta gente a usar as transmissões em direto nas redes sociais, então porque razão não houve espaço para o Meerkat? Porque os grandes das redes sociais chegaram-se à frente com as suas próprias propostas e no universo das plataformas sociais ganha aquele que tiver mais utilizadores.

Em primeiro lugar foi o Twitter a dar resposta ao Meerkat. A rede de microblogues desembolsou 100 milhões de dólares pela Periscope, uma empresa que estava a desenvolver um serviço de live streaming, mas que na altura da aquisição nem sequer estava acabado.

Isso pouco importou e foi uma aposta muito bem feita por parte do Twitter. Rapidamente a rede social lançou o Periscope no mercado e rapidamente o Meerkat começou a ficar abafado. Apesar de desequilibrada, a luta ainda durou algum tempo.

O Twitter só não eliminou o Meerkat mais cedo e sozinho porque foi lento no lançamento do Periscope. Os utilizadores do iOS foram os primeiros a receber a nova plataforma social, mas os do Android ainda tiveram de esperar algumas semanas.

O que o Twitter pensava ser uma estratégia de ‘vamos aguçar o apetite para rebentar tudo quando chegar ao Android’ acabaria por ser um erro. Deu tempo para o Facebook criar a sua alternativa ao Periscope e ao Meerkat.

Em agosto de 2015 o Facebook entrou oficialmente na guerra. Sim, a rede social que na altura já tinha mais de mil milhões de utilizadores decidiu que as transmissões de vídeo em direto também faziam sentido na sua plataforma. O lançamento foi feito de forma faseada, estando numa primeira fase apenas acessível às celebridades.

Estamos a fazer uma retrospectiva de 2015 pois foi aí que começou a moldar-se a euforia do live streaming. A verdade é que só em 2016 começaríamos a sentir o verdadeiro impacto do fenómeno.

À medida que o Twitter ia adicionando utilizadores ao Periscope, o Facebook foi alargando a ferramenta de transmissão de vídeo em direto a mais grupos – meios de comunicação e marcas, por exemplo. No dia 6 de abril o Facebook virava por completo o tabuleiro a seu favor ao disponibilizar o live stream para tudo e todos.

Dados revelados pela empresa Socialbakers durante o mês de novembro, e que dizem respeito a uma análise feita entre janeiro e setembro de 2016, mostram como rapidamente o Facebook conseguiu conquistar o mercado das transmissões em direto.

Evolução da utilização do Facebook e do Twitter para transmissões em direto pelos meios de comunicação

Evolução da utilização do Facebook e do Twitter para transmissões em direto pelas marcas

Evolução da utilização do Facebook e do Twitter para transmissões em direto pelas celebridades

A rápida ascensão do Facebook explicam-se por dois factores muito simples: o número superior de utilizadores que tem relativamente ao Twitter e o facto de ter integrado o live stream diretamente na sua aplicação principal.

Este foi aliás um dos pontos negativos da estratégia do Twitter e a empresa só pode condenar-se por ter reagido tarde demais. A rede de microblogues acreditou que conseguiria manter duas plataformas distintas, o Twitter e o Periscope, mas a verdade é que é muito mais prático poder fazer as transmissões a partir da mesma app, mesmo que seja para transmitir para duas plataformas distintas.

A situação só foi revertida há algumas semanas quando o Twitter decidiu permitir a realização de transmissões em direto a partir da sua aplicação principal. Mais vale tarde do que nunca, certo?

A derradeira partilha social?

“O mundo da tecnologia está focado no vídeo em direto porque aproxima-nos de ideias, eventos e das pessoas que são importante para nós”, escreveu em maio o diretor executivo da Livestream, Jesse Hertzberg.

“Há poder e verdadeira ligação nas experiências em direto. Nada bate a imediatez do momento e o impacto de uma experiência partilhada. Nada se aproxima da energia de um evento ao vivo”, acrescentou.

O CEO da Livestream descreve e bem nestas duas frases por que razão os vídeos em diretos tornaram-se tão populares. Do ponto de vista social, do ponto de vista social online, fazem todo o sentido. As pessoas já não precisam de partilhar uma fotografia de cada vez ou um conjunto de vídeos, podem mostrar em direto aquilo que estão a viver.

Os live streams tornaram-se populares pois a tecnologia também assim o permitiu. Os acessos à internet, fixos e móveis, continuam a melhorar, os smartphones têm cada vez melhores sensores fotográficos e os operadores começam a ajustar algumas das suas propostas de telecomunicações às reais necessidades de um mundo conectado.

Depois há outra questão interessante: o vídeo em direto vem potenciar aquilo que as empresas, marcas e meios de comunicação procuram nas plataformas online – alcance. Por exemplo, agora uma reportagem de um canal de televisão não precisa de ficar circunscrito às suas emissões por cabo ou na TDT.

A SIC esteve dezenas de horas em direto no Facebook a partir do Web Summit, a primeira edição do evento feita em Portugal. O Web Summit pelo perfil tecnológico e pelo preço dos bilhetes acaba por ser um pouco restritivo, portanto transmitir o evento no Facebook durante um alargo período de tempo aproximou muitas mais pessoas do evento.

Quando cerca de quatro mil pessoas ficaram à porta do MEO Arena quando o evento arrancava, foi o live streaming que ajudou a amenizar um pouco o ambiente.

O Buzzfeed, uma das publicações de entretenimento de referência nos EUA, conseguiu amealhar mais de 11 milhões de visualizações com um único vídeo, aquele em que colocou duas pessoas a rebentarem uma melancia apenas com elásticos. Chegaram a estar mais de 800 mil pessoas em simultâneo à espera que o momento da explosão chegasse.

Mas nem tudo foi mimo no ano do live streaming. O poder das ferramentas dá para os dois lados – para o bem e para o mal. Por exemplo, durante o ano de 2016 foram registados alguns live streams nos quais houve mortes em direto. Um dos casos mais falados foi o de um cidadão do Minnesota que foi baleado quatro vezes pela polícia e a namorada imediatamente começou a transmitir tudo para o Facebook para que pudesse ficar registado. Ou seja, o facto de os vídeos em direto não terem sobre si qualquer filtro também acaba por comportar alguns riscos, mas são sem sombra de dúvida uma ferramenta poderosa.

O que há alguns anos parecia exclusivo das grandes cadeias de televisão e de programas de entretenimento massivos como o Big Brother, agora é fazível através de um smartphone. Como o empreendedor Gary Vaynerchuck disse durante o Web Summit em Lisboa, “o smartphone é agora a televisão e a televisão é agora a rádio; o Facebook, o Instagram e o Snapchat são a ABC, NBC, BBC e Sky”.

O ano de 2016 foi aquele em que as pessoas se sentiram mais confortáveis com o vídeo em direto e começaram a partilhar a sua vida online. Ou seja, este foi o verdadeiro ano da vida em direto.

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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