A Cyanogen chega ao fim porque há muito que deixou de fazer sentido

“Como parte de uma consolidação que tem decorrido na Cyanogen, todos os serviços e desenvolvimentos suportados pela Cyanogen vão ser descontinuados no dia 31 de dezembro. O projeto open source e o código fonte vão manter-se disponíveis para quem quiser construir o CyanogenMod pessoalmente”.

Esta foi a mensagem deixada pela Cyanogen no seu blogue e que veio confirmar aquilo que já muitos suspeitavam: a situação da empresa estava difícil. Sabendo no entanto que ainda no final de novembro a empresa anunciou uma reestruturação à sua forma de atuar, este novo anúncio acaba por chegar com surpresa e de forma abrupta. Poucos pensariam que o fim estaria tão próximo.




Mas primeiro de tudo é necessário saber o que é e o que faz a Cyanogen. Apesar de ser um nome relativamente conhecido do universo Android, serão certamente muitas as pessoas que ou não ouviram falar da empresa, ou simplesmente não sabem o que faz, nem o impacto que teve no mundo dos sistemas operativos móveis.

Tudo começou em 2009 quando surgiu o CyanogenMod. Na prática era uma versão alternativa do sistema operativo Android, que garantia mais funcionalidades, melhor integração com os dispositivos, maior personalização e maior nível de controlo no sistema operativo. Sim, em muitos aspetos o CyanogenMod conseguia ser superior ao Android da Google.

A expressão root – que significa ter acesso de administrador em todo o sistema operativo – tornou-se popular graças ao CyanogenMod e às muitas versões que foram construídas a partir do projeto. Para instalar esta versão alternativa do sistema operativo Android o utilizador precisava de ter o smartphone rooteado, pois era um ‘desbloqueio’ necessário para ganhar acesso a funcionalidades como o overclocking do processador.

Este foi o logótipo oficial da CyanogenMod. Uma das questões que se coloca agora é: para quem vai ficar a marca e os seus respetivos direitos?

A questão é que o CyanogenMod passou de ser apenas um simples projeto de alguns programadores, para ser algo que muitos consumidores Android procuravam e que atraia cada vez mais pessoas para a comunidade. Durante muito tempo o CyanogenMod corrigiu muitos dos problemas que existiam no sistema operativo Android, sobretudo o das atualizações.

Enquanto a Google e os fabricantes abandonavam os equipamentos e os utilizadores à sua sorte, os programadores da comunidade CyanogenMod davam nova vida a esses smartphones. Com o CyanogenMod o ciclo de vida do Android num dispositivo passava de um ou dois anos, no melhor dos casos, para três, quatro ou cincos anos, sobretudo nos smartphones topo de gama.

Mas a grandeza dos projetos traz sempre outras implicações. A popularidade que o CyanogenMod atingiu mexeu com o mercado. Por um lado obrigou os fabricantes de smartphones a começarem a trabalhar melhor as suas próprias versões do Android, o que aumentou a qualidade da concorrência. Por outro mostrou algum potencial comercial para o lado do CyanogenMod.

Foi então que em 2013 surgiu a Cyanogen. Na prática alguns dos principais programadores que desenvolviam as ROM CyanogenMod de forma gratuita, tentaram criar uma empresa que lhes permitisse rentabilizar o conceito. A ideia seria funcionar um pouco como as modificações dos videojogos: criar um produto diferenciador e alternativo ao ponto de alguém pagar por ele.

A Cyanogen enquanto empresa desenvolveu um sistema operativo próprio – o CyanogenMod passou a ser o CyanogenOS, uma versão mais estável e mais ‘comercial’ do projeto anterior e que os elementos da empresa esperavam vender aos fabricantes de smartphones.

Desde o início que o conceito da Cyanogen é no mínimo discutível: a empresa queria basicamente ganhar dinheiro por uma versão personalizada do Android quando o próprio sistema operativo da Google está disponível para todos de forma gratuita. A Cyanogen nasceu de uma das maiores comunidades de programadores do mundo, mas a partir do momento em que estabilizou como empresa, a verdade é que também perdeu ritmo competitivo.

O momento que trouxe maior fama à Cyanogen, foi igualmente aquele que lhe trouxe maior desgraça.

Parceria com a OnePlus

Já aqui dissemos que a OnePlus montou uma estratégia de marketing muito boa para os seus smartphones, o que lhe permitiu passar do anonimato para o estrelato em apenas três anos.

No ano de 2013, quando a OnePlus preparava-se para lançar o One, firmou uma parceria com a Cyanogen para que o seu sistema operativo fosse integrado no smartphone. A OnePlus queria aproveitar parte do mercado que a Cyanogen já tinha criado, apresentando um smartphone com boas especificações, mas com um preço muito mais reduzido do que os dos dispositivos concorrentes.

A verdade é que a fama acabou por subir à cabeça da Cyanogen. Em vez de ter gozado do bom momento que a OnePlus também proporcionou ao seu sistema operativo, o diretor executivo da empresa na altura, Kirt McMaster, optou pela estratégia errada.

Depois de um desentendimento público com a OnePlus por causa da proibição da venda do OnePlus na Índia devia a um acordo que a Cyanogen já tinha com outra empresa, o CEO da Cyanogen mais tarde veio a público ‘lavar roupa suja’.

“Sem a Cyanogen, a OnePlus teria vendido só um dispositivo nos mercados internacionais. Essencialmente eles construíram a sua marca às cavalitas da Cyanogen”, acusou já em abril de 2015, citado pelo Digital Trends.

Imagem do site da OnePlus relativo à promoção do One. Na altura o Cyanogen OS era apontado como um dos elementos diferenciadores. #Crédito: OnePlus

Por esta altura já a Cyanogen estava numa espiral descendente de importância. A questão era justamente esta: o mercado já não precisava daquilo que a Cyanogen tinha para propor. As ROM personalizadas do Android simplesmente já não fazem tanto sentido como faziam antigamente.

Nos primeiros anos, quando o Android era um sistema operativo mais modesto, ter uma versão do sistema operativo desenvolvido pela comunidade CyanogendMod fazia todo o sentido: o software original era limitado, as atualizações eram ainda mais escassas e as ROM acrescentavam de facto valor à experiência de utilização.

Nos últimos dois anos o mercado já não funcionou assim. O hardware melhorou bastante, inclusive nos segmentos de gama baixa, o software está mais fluído, mais polido e mais completo do que nunca. Na prática o Android soube evoluir justamente no sentido que a Cyanogen proporcionou aos seus utilizadores há já muitos anos.  A Google retirou aos utilizadores razões para que precisassem de procurar algo como um CyanogenOS ou CyanogenMod. Devido ao estado atual do Android, uma ROM personalizada faz cada vez menos sentido.

Por exemplo: a questão da personalização que ao início era um dos grandes chamarizes da CyanogenMod, agora é algo que facilmente pode ser gerido com uma ou duas aplicações da Play Store. As questões da privacidade e da segurança também é uma área que tem recebido forte resposta por parte dos maiores players do mercado Android.

Para os utilizadores ‘hardcore’ e para os entusiastas do Android, as ROM continuam a fazer sentido e parte do seu dia a dia. Mas esta é uma franja mínima do mercado. Sem mercado, não há negócio e a Cyanogen sentiu isso na pele.

Duas oportunidades com a Google

A história da Cyanogen fica ainda mais turbulenta quando temos em consideração que a empresa, que tentava ganhar vida com uma bifurcação do Android, teve dois momentos chave com a Google.

O primeiro foi revelado em 2014, como revelou o The Information. O então diretor da divisão Android da Google, Sundar Pichai, encontrou-se com Kirt McMaster para lhe fazer uma oferta pela sua empresa. A oferta foi prontamente recusada pois Kirt McMaster preferia desenvolver o projeto de outra forma.

Na altura o responsável da Cyanogen preferiu esperar pelo dinheiro dos investidores, o que garantiria uma maior independência à empresa. Nesta fase ainda o casamento com a OnePlus ia relativamente bem, tendo outros fabricantes como a Oppo e a Micromax colocado o CyanogenOS em alguns dos seus equipamentos.

A segundo momento surgiu em 2015 – quando o mesmo Kirt McMaster disse que a sua empresa estava a colocar uma “bala na cabeça da Google”. A frase, dita numa entrevista à Forbes, foi perfeita para ajudar a criar barulho na imprensa, mas também acabou por tramar a Cyanogen: a empresa nunca fez nada que justificasse tal audácia.

A experiência de utilização do Cyanogen OS é pouco diferenciada do Android ‘tradicional’. #Crédito: Cyanogen

Mas a verdade é que muitos levaram a ambição da Cyanogen a sério: Twitter, Microsoft, Qualcomm e Tencent estão entre um vasto rol de empresas que investiram na Cyanogen e chegaram a colocar a sua valorização próxima aos mil milhões de dólares. No fundo a Cyanogen era vista como um possível contra-peso da Google: caso a gigante norte-americana colocasse imposições no seu sistema operativo, haveria uma alternativa mais livre e tão fiável mesmo ao lado.

Olhando para os últimos anos da Cyanogen é fácil de ver a acumulação de vários erros. Nas palavras de um dos executivos do projeto, Steve Kondik, as constantes guerras compradas por Kirt McMaster e a má gestão do projeto foram duas das maiores machadadas nas suas ambições, como resume a Android Authority.

O mais recente dos erros foi até a própria forma como o fim do projeto foi anunciado: na altura do Natal, quando existem poucas notícias de interesse, obviamente que o tema do Cyanogen acabou por ganhar uma proporção muito maior do que aquela que teria, por exemplo, durante uma Consumer Electronic Show ou um Mobile World Congress.

A história não fica no entanto por aqui. Daquilo que já é possível perceber pelas notícias da imprensa especializada, o CyanogenOS pode estar condenado, mas o CyanogenMod vai continuar a existir desde que existam programadores interessados. Mas como a fama do projeto baixou consideravelmente, os elementos da Cyanogen vão tentar um reboot: o LineageOS deverá ser um regresso às origens, de programadores para utilizadores.

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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