A Comma.ai pode ter menos de dois anos de vida, mas têm sido tempos repletos de emoções. Tudo começou no ano de 2015 com um prelúdio, no qual a empresa aguçou o apetite da imprensa com o seu sistema de condução autónoma. O primeiro ato só aconteceria em setembro de 2016 quando o fundador da startup, George Hotz, fez a primeira apresentação pública do Comma One.
O Comma One era um equipamento de mil dólares que teria capacidade para dar algumas funcionalidades de condução autónoma a determinados veículos. A apresentação foi eufórica e um momento como há muito já não se via.
Se o primeiro ato foi um sucesso, amealhando aplausos um pouco por toda a internet, já o segundo ato foi uma verdadeira tragédia.
A entidade dos EUA que define as regras de segurança para os veículos circularem na estrada, a NHTSA, enviou uma carta a George ‘Geohot’ Hotz na qual mostrava preocupações sobre o projeto. “Estamos preocupados que o seu produto coloque em risco a segurança dos seus clientes e dos outros condutores. Encorajamos fortemente que adie a venda ou o lançamento do seu produto nas estradas públicas a menos e até que possa garantir que é seguro”, lia-se na carta.
O projeto Comma One foi cancelado. ‘Geohot’ nunca disse que isso seria o fim da empresa, apenas daquele projeto. O terceiro ato seria inevitável e aconteceu ontem.
Volte-face
O Comma One tinha como objetivo ser vendido, portanto estava sujeito às regras que existem no mercado. George Hotz contesta o facto de o produto ter sido alvo de escrutínio quando nem sequer as pré-vendas estavam a ser feitas, mas percebeu que precisava de mudar de rumo.
O engenhoso empreendedor, conhecido por ser o primeiro a criar um jailbreak para o iPhone e por ter conseguido piratear a PlayStation 3, arranjou uma forma de manter o projeto vivo e de ainda assim desviar-se das ‘balas’ legislativas.
Ontem ‘Geohot’ voltou a convocar a imprensa norte-americana, desta vez para apresentar-lhes dois novos produtos: o Open Pilot e a caixa Comma Neo, como relatam o The Verge e a Venture Beat.
Na prática o que a Comma.ai fez foi pegar no seu anterior projeto, o Comma One, e dividi-lo. De um lado está a vertente de software, o Open Pilot. Do outro lado está a vertente de hardware, a Comma Neo. Mas se a Comma One era para ter sido comercializada, ambos os novos produtos estão a ser dados. Literalmente. Basta visitar o repositório da Comma.ai no Github e meter mãos à obra.
O Open Pilot contém todo o software que alimenta o sistema de condução autónoma que George Hotz e a sua equipa têm vindo a desenvolver. Este código pode ser usado por qualquer um – seja um tecnólogo, um mero entusiasta versado em tecnologia ou até um grande fabricante automóvel.
Por agora o software continua a ser apenas compatível com dois veículos – Acura ILX com Acura Watch Plus e Honda Civic Touring, ambos os modelos de 2016. É de destacar que nenhuma das marcas tem qualquer ligação oficial ao projeto.
Mas para que o sistema de condução fique funcional, falta uma vertente de hardware. É aí que entra a Comma Neo. Esta parte do projeto ensina os interessados a desenvolverem uma pequena caixa que vai substituir o espelho retrovisor interior dos carros. Em combinação com o Open Pilot, cria o sistema autónomo da Comma.ai.
Do lado do hardware não são precisos muitos recursos para atingir o resultado desejado. A caixa deve ser impressa em 3D e a componente principal é o smartphone OnePlus 3. Mas em vez de usar a versão nativa do Android, vai ser substituída por uma versão costumizada que torna o dispositivo num sensor de condução inteligente.
A startup norte-americana afirma que o seu sistema de condução autónoma é melhor do que qualquer outro que existe atualmente no mercado, à exceção do mais recente sistema autónomo disponibilizado pela Tesla – palavras do próprio ‘Geohot’.
“Queremos tornar isto o mais simples possível para o maior número de pessoas possível”, George Hotz, em declarações à Forbes
Ao dar o seu software, a Comma.ai está a garantir que o projeto não morre, está a garantir que possa até ganhar mais escala e está ao mesmo tempo a evitar possíveis problemas legais. A partir do momento em que a empresa não vende um produto, torna-se um alvo mais esguio para a NHTSA. A própria NHTSA diz não ter uma posição oficial sobre o novo posicionamento da Comma.ai.
Melhor: uma vez o hacker norte-americano fez uma comparação interessante dizendo que se o Autopilot da Tesla é o equivalente ao iOS para automóveis, então a sua empresa queria construir o sistema operativo Android. Ora, a Google atingiu um grande sucesso no ecossistema móvel justamente ao não vender o código fonte do Android, mas dando-o às fabricantes.
Um elemento importante da apresentação de ontem é que George Hotz desmentiu os relatos que diziam que o projeto Comma One tinha morrido pois os investidores tinham virado costas à empresa. “Isso não é verdade”, esclareceu o empreendedor norte-americano.
Mas ainda há elementos que ficaram por esclarecer. De acordo com o The Verge, as prioridades da Comma.ai são: divertimento, resolver o problema dos veículos autónomos e quem sabe gerar algum dinheiro. A partir do momento em que estão a dar o produto que anteriormente queriam vender, a empresa terá obrigatoriamente de arranjar outra forma de sustento a médio prazo.
‘Geohot’ diz que o objetivo é criar uma rede Comma.ai muito ao estilo daquilo que a Google conseguiu fazer com o Android – as pessoas usam o Android, usam o Gmail, usam o YouTube e não pagam por qualquer um destes serviços. A Google tem no entanto uma rede de grande valor e isso permite-lhe rentabilizar as ‘oferendas’ que faz.
O teatro não fica por aqui
Esta mudança matreira – no sentido em que permite à empresa continuar a desenvolver o seu projeto – é uma garantia de que nos próximos meses vamos continuar a ouvir falar da Comma.ai. Para provar isso mesmo o fundador da startup publicou ontem, 30 de novembro, no YouTube, um vídeo onde mostra já uma Comma Neo em funcionamento.
No vídeo não é explícito se o carro está a conduzir sozinho, sem qualquer auxílio humano. Mas é visível que o hardware desenvolvido pela Comma.ai consegue reconhecer as diferentes faixas que rodagem da autoestrada e também deteta os movimentos dos veículos que estão à sua volta.
Todo o vídeo foi gravado enquanto o veículo viajava a 105 Km/H.
“Quem pensaria que passados dez anos estaríamos a fazer jailbreak a carros?”, questiona ‘Geohot’ na descrição do seu vídeo. “Adoro o futuro”, acrescentou depois.
O pano desce.