A meia coragem da Apple

Ter coragem é ter firmeza. Ter coragem é não hesitar. Ter coragem é ter firmeza e não hesitar mesmo que isso signifique algum risco, algum perigo ou alguma animosidade. A Apple diz ser corajosa, mas analisando bem a questão da remoção da entrada de áudio de 3,5 milímetros dos novos iPhone 7, talvez o termo não tenha sido o mais bem escolhido.

Mas comecemos ao contrário. Comecemos por aquilo que a Apple diz e que na perspetiva da empresa justifica a decisão de remover uma das mais populares entradas multimédia dos dias atuais.



“Os Apple Earpods são os auriculares mais populares do mundo. E com os iPhone 7 e iPhone 7 Plus vamos ligá-los através de um conector Lightning. Mas porquê usar Lightning?”, começou por dizer o vice-presidente e responsável pela área de marketing, Phil Schiller, durante a apresentação dos novos smartphones.

O executivo disse depois que tinha três motivos que justificavam esta transição. O primeiro estava relacionado com o facto de o conector Lightning ser uma alternativa tecnologicamente viável à entrada de 3,5 milímetros, garantindo qualidade na transmissão de som digital.

Existem 900 milhões de dispositivos com suporte para ligações Lightning no mundo

Depois a Apple diz que a remoção da entrada de áudio de 3,5 milímetros ajudou a criar espaço para outros componentes. Na altura não foram especificados quais os componentes, mas o diretor executivo da marca da maçã, Tim Cook, revela agora numa entrevista à ABC News, que se o iPhone tem agora uma bateria maior e duas colunas é graças à remoção do headphone jack.

A terceira razão é a visão. “A visão de como vão ser as experiências áudio no futuro. Queremos chegar lá o mais rápido possível e torná-las o melhor possível. Nós temos uma visão de como é que o áudio deve funcionar nos dispositivos móveis”, defendeu Phil Schiller durante o evento. Esta visão passa por equipamentos de áudio sem fios, como os novos AirPod.

Mas antes de apresentar estas três razões o chefe máximo de marketing da Apple – e portanto deve ter escolhido bem a palavra – disse que havia uma único termo que resumia o motivo pelo qual a Apple estava a fazer a remoção da entrada de 3,5 mm: coragem.

“A coragem de avançar, de fazer algo novo que nos serve melhor. E a nossa equipa tem uma tremenda coragem”.

Esta semana a publicação The Verge até recuperou uma entrevista do falecido cofundador da Apple Steve Jobs onde se pode perceber um pouco melhor o que significa esta ‘cultura’ de coragem na empresa.

Coragem é ter firmeza e não hesitar. Não somos nós quem o diz. É o dicionário. E parece notório que a Apple está com algumas hesitações relativamente a esta decisão que tomou.

Apesar de já ter feito a implementação ‘de peito cheio’, ou seja, já removeu efetivamente a entrada áudio de 3,5 milímetros dos novos iPhone, existem dois sinais de respeito pelo legado: dois acessórios oficiais da Apple que são a prova de que o mundo talvez não esteja preparado para assumir com a entrada Lightning o mesmo compromisso que já tem há anos com a entrada de 3,5 mm.

O primeiro acessório é um conversor de entrada Lightning para entrada de 3,5 milímetros. Este acessório será incluído na caixa de todos os iPhone 7 e iPhone 7 Plus. É um gesto atencioso por parte da Apple, mas também mostra uma falha na execução da estratégia e da visão.

Se de facto quer acabar com o headphone jack então seria de esperar não haver alternativas para que ele sobreviva. E é justamente isto que a Apple está a fazer.

“Sabemos que existem algumas pessoas no mundo que têm dispositivos antigos de conexão analógica. Então também fizemos isto. É um adaptador. Um adaptar de áudio de Lightningh para mini-phono. E vamos inclui-lo na caixa com todos os iPhones 7 e iPhone 7 Plus”, disse Phil Schiller durante o evento.

Phil Schiller revela o adaptador para os novos iPhone. Se o perder terá de pagar cerca de dez euros. #Crédito: Apple

Um aspeto relativo a este anúncio e que pode ser analisado de duas perspetivas: o público deu um forte aplauso. Talvez pela ‘benevolência’ da Apple, talvez como alívio por saberem que o seu ecossistema de equipamentos está a salvo.

Ou seja, a menos que o utilizador fique muito incomodado em ter por perto o adaptador, não há aqui razão para trocar de auscultadores ou para achar que mais vale colocar à venda os seus equipamentos com entrada de 3,5 milímetros.

O segundo sinal de estratégia dúbia e de como talvez o headphone jack devesse ter ficado no iPhone é o facto de a Apple ter um adaptador que permite ligar o cabo Lightning dos auriculares e um segundo cabo Lightning para carregar o dispositivo.

Ou seja, a Apple criou um acessório de 40 dólares para resolver um problema que existe nos novos iPhone. Mas que não existia nas versões anteriores do smartphone. Ou seja, a remoção do jack de 3,5 milímetros criou de facto um problema, ainda que específico, na vida de alguns utilizadores.



Numa altura em que a inovação nos smartphones parece estar mais estagnada tendo em conta aquilo que vimos ao longo dos últimos dez anos, a Apple tem tentado afirmar-se de outras formas. Há quem compare a remoção da entrada de 3,5 milímetros à remoção dos leitores de CD e das portas Ethernet dos computadores portáteis, algo no qual a Apple também deu um forte contributo.

Mas a Apple tem tentado outras afirmações tecnológicas que não têm tido grande impacto. Tentou negar durante algum tempo o NFC, mas acabaria por incorporá-lo nos seus equipamentos para permitir o Apple Pay. No ano passado deu grande destaque ao Force Touch, mas ainda é pouco suportado e tem um baixo impacto na experiência de utilização.

Como em muitas outras decisões só o tempo dirá qual o verdadeiro impacto da opção de afastar a entrada de áudio analógica. É impensável ver a Apple daqui a dois ou três anos a recuar nesta decisão. Aliás, a tecnológica vai contar com o apoio de vários fabricantes de acessórios que sabem que o iPhone é um ecossistema bastante valioso e que gera também muito dinheiro para os negócios adjacentes.

A questão é que mesmo a entrada Lightning não parece ser o futuro do áudio no iPhone. A Apple disse alto e a bom som que tem a visão de um futuro sem fios – para quando o carregamento por indução? -, portanto mesmo os novos conectores Lightning podem ter uma curta esperança de vida.

E caberá à Apple mostrar a vontade da sua decisão. Para ser um verdadeiro ato de coragem então a entrada de áudio de 3,5 milímetros terá de desaparecer do iPod, do iPad, do Macbook, do Macbook Air e do Macbook Pro.

A concorrência também terá uma palavra a dizer. Haverá empresas que vão imitar a decisão da Apple, mas o que vão fazer a Samsung, a Sony, a HTC, a LG, a Huawei e a Xaomi? Se estas empresas continuarem a alimentar o jack de 3,5 milímetros então podemos ter aqui uma tecnologia para mais um bom par de décadas. Bem analisado o mercado o ecossistema Android tem um peso muito maior do que o iOS.

Só para referência histórica vale a pena clarificar que o iPhone não foi o primeiro smartphone a abandonar a entrada de áudio de 3,5 milímetros: Oppo Finder, Oppo R5, LeEco Le2 e Lenovo Moto Z chegaram lá primeiro, e no caso do Oppo Finder a remoção da entrada de 3,5 milímetros até aconteceu no ano de 2012. Terá sido coragem?

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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