A arte é subjetiva. Certo. Mas isso não nos impede de olhar para peças artísticas com outros olhos e perspectivas. Até porque o propósito da arte é esse mesmo: mexer connosco, com o nosso interior, fazer sentir-nos coisas. Os videojogos são, eles também, peças artísticas, mesmo que inicialmente possam não ter sido construídos com esse intuito.
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É difícil argumentar que Pong, Pac-Man ou Space Invaders pretendiam despertar consciências, explorar apontamentos políticos, sociais ou estéticos. Eram meramente produtos do seu tempo, desenhados com o único intuito de entreter-nos durante a repetição de 2 ou 3 ações mecânicas.
No entanto, e à medida que a tecnologia foi evoluindo, os criadores de videojogos foram tendo acesso a mais e melhores ferramentas para dar largas à sua imaginação, conferindo-lhes a capacidade de contar histórias extremamente complexas através deste meio interativo. É, de resto, um veículo perfeito para criar arte, por nos permitir entrar, interagir e manipular o objeto artístico, de uma forma que a literatura, o cinema ou a pintura não nos permite.
Com a evolução do meio artístico nos videojogos, evoluiu também o papel do crítico – inicialmente interpretado por entusiastas do meio, ansiosos por partilhar os pensamentos sobre os seus hobbies de nicho, agora transformado num papel mais importante, a quem é exigido não só conhecimento aprofundado sobre o passado da indústria, mas também capacidade argumentativa para explorar, desconstruir e reapresentar o jogo através da sua visão.
Não é raro vermos um jogo viver ou morrer de acordo com aquilo que é a média de análises nos sites agregadores, o que acaba por conferir uma maior responsabilidade e, embora seja debatível, poder a quem escreve, analisa e no fundo decide qual é a narrativa principal acerca da peça artística em concreto.
Susan Sontag, filósofa e crítica cultural do Século XX, argumenta no seu ensaio “Against Interpretation” que o foco do crítico de arte na interpretação e significado da obra levou-nos a uma hermética da suspeição, reduzindo a arte a mero conteúdo ou mensagem.
Ou seja, para Sontag, a necessidade que os críticos de arte na década de 50 e 60 tinham em, na sua opinião, sobre-analisar e escrutinar todos os contextos e possíveis sentidos por trás duma obra retiravam-nos a possibilidade de, no momento em que fossemos expostos à mesma, não sentirmos o seu poder emocional.
Resumindo, esta necessidade de explorar, criticar e construir uma narrativa que justifique a existência da peça e o que ela, potencialmente, nos poderá fazer sentir, rouba-lhe depois a capacidade de nos surpreender e emocionar diretamente – e perdemos, nós também, a possibilidade de sentirmos de forma mais crua e direta o impacto artístico da obra quando expostos à mesma.
É-vos familiar? Natural, porque existem imensos paralelos com alguma da experiência atual no nosso consumo de videojogos. Levantem a mão agora se conhecerem alguém que decidiu, previamente, não experienciar um jogo apenas porque leu determinada crítica ou pontuação agregada que, no seu entender, explorou de forma suficiente o jogo e, portanto, classificou-o à cabeça como não merecedor do seu tempo?
Importante, antes de explorar mais o papel do crítico, deixar uma nota prévia. Nem todos os jogos têm o intuito de ser arte. Não nos esqueçamos que a indústria dos videojogos não só pretende não só entreter, como recriar experiências competitivas que vivem mais do aprimorar das mecânicas e jogabilidade, que da possível desconstrução e interpretação de mensagens. Quando um crítico analisa um título focado exclusivamente na componente desportiva, como FIFA, CS:GO ou League of Legends, fá-lo do ponto de vista da modalidade e do que oferece para essa comunidade – e bem.
Bom, voltando atrás. Esta visão construída pela profissionalização do crítico e pelo poder que a sua crítica tem acaba por, muitas vezes, roubar-nos de potenciais experiências que podem conter elementos artísticos e estéticos capazes de nos surpreender e emocionar se não formos pelo nosso próprio pé. Scorn, por exemplo: não é, de todo, um jogo para toda a gente, até pelos temas extremamente violentos e maduros que aborda, em cima de mecânicas que não estão aprimoradas como noutros títulos. A sua pontuação agregada, abaixo dos 70%, reforça esse sentimento.
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Porém, é uma obra de arte absolutamente recomendável, pela forma crua, grotesca e muitas vezes animalesca com que representa a brutalidade da experiência humana. Obriga-nos a, através da direção de arte surrealista e assente no horror e na manipulação do corpo humano, confrontar os nossos maiores receios e, até em certo ponto, a nossa agência naquilo que é o nosso destino ou meta, como jogadores e como seres vivos. É agoniante, dolorosa e arrepiante, tal como a arte merece ser.
A minha descrição não lhe fará justiça nem deve ser, a partir dela, que decidem experimentar Scorn. O argumento de Sontag é esse mesmo: não podemos deixar que a crítica e sobre-análise nos roube a capacidade humana de explorarmos, por nossa conta e risco, peças de arte para que possamos, nós próprios, encontrar os significados que elas nos conferem, através da nossa experiência pessoal.
No entanto, isto não é uma verdade absoluta. Arthur C. Danto, filósofo e crítico de arte norte-americano, rejeita a proposta de Susan Sontag no seu livro “The Abuse of Beauty: Aesthetics and the Concept of Art”, reforçando que a seu ver, Sontag não tem em conta o facto de que a arte, em si própria, tem propósito de forma inerente. Ou seja, é impossível, mesmo através do consumo de crítica artística, conseguirmos experienciar arte sem fazermos uma interpretação pessoal do objeto artístico – segundo Danto, a obra artística não é apenas estética, mas também uma amálgama de ideias e conceitos.
Enquanto crítico-mirin de videojogos, acabo por entender melhor esta premissa. Na verdade, ser-me-ia impossível falar de cinema, teatro, pintura, videojogos, música, sem primeiro explorar e explicar o que me fez sentir, porquê e o contexto adjacente a essas emoções. Para Danto, essa interpretação inicial não nos vai roubar, numa segunda fase, da nossa própria interpretação quando expostos à obra artística.
Pegando em Papers, Please: é sobejamente conhecida a análise e exploração do impacto político e social que as mecânicas simples da carimbagem dos documentos de passagem de fronteiras conferem a quem joga o jogo. Mas, reforçando o argumento de Danto, embora possamos compreender que existe um desejo no jogo de nos fazer refletir sobre a crise de imigração na Europa do Leste através das suas mecânicas, o impacto emocional e artístico apenas será completo quando estivermos no papel do decisor, a escolher quem deixamos passar na fronteira e quem votamos à guerra e à desolação.
Da mesma forma que jogos altamente divisivos, como The Last of Us Part 2, podem despertar críticas e análise abismalmente antagónicas, e no final do dia nenhuma conseguir representar ou antecipar a nossa reacção emocional ao sermos expostos ao jogo. Os temas da fragilidade humana, do conceito de vingança e da violência são, sem dúvida, linhas orientadoras da narrativa de Last of Us, tanto ao nível do enredo como ao nível da mecânica. Mas são as nossas experiências, vivências e formas de desconstruir o Mundo que nos farão sentir e interpretar a jornada de Ellie e Abby à nossa maneira, de formas completamente distintas.
Não existe um consenso sobre como devemos apreciar a arte, o que é arte na verdade, e qual o real papel de quem a critica. Contudo, à medida que a indústria dos videojogos vai deixando a adolescência, também o papel que decidimos tomar, enquanto atores sociais, no consumo e discurso sobre a indústria reflete e molda o seu futuro. Porque, fruto dos custos de produção muito acima de outras correntes artísticas, a rentabilidade de um jogo é absolutamente fulcral para a liberdade – ou falta dela – na experiência artística a partilhar.
E atualmente, também fruto da sua mercantilização, é mais fácil, críticos e fãs, orientarmos o nosso discurso para uma quantificação simplificada do que é um “bom videojogo” através dum agregado de pontuações, esgrimindo esse algarismo em servidores de Discord, conversas no Twitter ou grupos de WhatsApp para justificar que “o meu jogo é mais fixe que o teu”. Embora em pontos completamente distintos, Sontag e Danto estão de acordo num ponto: a arte merece ser experienciada.
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E a nossa escolha para a experienciar, até para o nosso crescimento intelectual e emocional, deve tentar ser o mais eclética possível. Não quer dizer que os fãs de FIFA não possam concentrar sempre o seu tempo e atenção no simulador da EA Sports, nem que eu, de repente, vá jogar todos os FPS do planeta de enfiada. Mas, da mesma forma que não aprendemos nada sobre nós nem sobre o que nos rodeia se nunca arriscarmos viajar fora da nossa zona de conforto, também se aplica o mesmo conceito de forma metafísica, através do nosso consumo de videojogos.
Sou um fã nato e absoluto de RPGs, mas se Scorn, Castlevania, Bioshock, Celeste ou Edith Finch me ensinaram alguma coisa, foi que há um Mundo inteiro de experiências diferentes que podem ter uma determinada interpretação artística, feita por profissionais, amigos ou fãs. Mas a única pessoa que perde por não experimentar – nem que seja para perceber que não gosta – sou eu. Por isso, da próxima vez que virem um jogo que desperte a vossa atenção não tenha a pontuação que vos pareça mais justa, não concentrem esforços em debater a avaliação. Explorem, isso sim, o que vos fez sentir e de que forma podemos, todos juntos, explorar melhor essa arte. Os videojogos merecem.