A minha relação com Castlevania era em tudo semelhante à que tinha com bacalhau: se me oferecessem, comia. Mas não seria nunca a minha primeira ou segunda escolha, tanto para refeição como para jogo.
Quanto ao bacalhau, a relação está mais cordial, mas pouco apaixonante. Já com Castlevania, não posso dizer o mesmo, porque desde Outubro de 2021 que entrei numa relação absolutamente viciante, intoxicante e inebriante. O culpado? Symphony of the Night.
Não é que já não tivesse tentado jogar outras entradas da clássica série da Konami, mas a minha noção rítmica inexistente impedia-me de conseguir progredir muito nos títulos da NES e da SNES, portanto fui adiando a experimentação do jogo da Playstation e da Sega Saturn. Acontece que, com o anime de Castlevania a entrar pela minha TV, explorando a história de Alucard, o afamado filho de Dracula, ganhei curiosidade.
E depois dum comentário no Twitter com uma promoção de quase oferta de Symphony of the Dark na Xbox, percebi que aquele Halloween tinha que ser celebrado com pompa e circunstância. O início da minha jornada tem alguns pontos em comum com a jornada de desenvolvimento do jogo. Primeiro, porque a minha expectativa com o que me aguardava encaixou na perfeição com a intenção que Toru Hagihara e Koji Igarashi tinham para esta iteração.
Apesar dos primeiros minutos repletos de ação tradicional Castlevania, é com Alucard que percebemos, com acesso a um mapa por preencher e despojado dos nossos equipamentos, que este não é um jogo linear de ação, mas sim um action RPG. Pelo menos, à época, teriam-lhe assim chamado, porque hoje em dia, e graças a Symphony of the Night e, uns anos antes, Super Metroid, a categoria é Metroidvania.
Hagihara e Igarashi queriam criar uma nova direção para a série. Igarashi comentara até que, a seu ver, era doloroso encontrar vários títulos Castlevania nas pilhas de jogos usados em lojas pelo Japão, e na sua ótica, isso devia-se à sua curta duração e dificuldade acima da média para o jogador normal. Portanto, a primeira missão era não só tornar o jogo mais repetível mas, também, gradualmente interessante sem perder as características que tanta popularidade trouxeram à série no início dos anos 90.
Para isso, a inspiração veio da Nintendo, mas não de Metroid. Legend of Zelda é citado como inspiração para o modelo que viria a tornar-se o absoluto standard do género, graças à progressão escalável da exploração no mesmo mapa. Tal como nas aventuras de Link, temos, na verdade, o castelo inteiro à nossa disposição logo no início do jogo: acontece não termos as ferramentas necessárias para chegarmos ou acedermos a todos os cantos. E Symphony of the Night planta a semente da curiosidade com uma decisão arriscada mas importante.
Apesar das mecânicas de RPG, com sistema de estatística associada a atributos e a níveis da nossa personagem, Alucard começa com equipamento que se poderá considerar end-game. Os nossos primeiros minutos são de total domínio, sem que qualquer inimigo – mesmo os Wargs, bestas gigantes que só encontramos novamente perto do fim do jogo – nos consiga fazer frente.
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E de repente, a Morte retira-nos todos os itens. E sem armadura, sem armas, sem acessórios, ficamos à completa mercê dos inimigos mais frágeis. Este vislumbre do que poderá ser o topo das nossas capacidades leva-nos a, numa primeira instância, avançar para perceber até onde o jogo irá até nos devolver o nosso potencial real.
E a partir daqui, Hagihara e Igarashi montam uma complexa, ardilosa e bela teia de pequenas decisões de design que nos ensinam, sem nunca explicar demasiado, o nível de exploração que podemos tomar neste castelo. Até ao primeiro boss, encontramos paredes ruídas, que nos dão um indicador visual que podem não só ser mandadas abaixo como poderão conter segredos importantes, como equipamento mais poderoso ou itens que nos aumentam a vida ou o nº de corações no máximo.
Encontramos inimigos com poucos movimentos para nos habituarmos a uma jogabilidade mais defensiva. Outros com drops constantes de itens para nos ensinar a esperar potenciais recompensas por tentar derrotar cada oponente. Encontramos ainda sequências de plataformas com recurso a alavancas ou botões que nos façam utilizar o cenário a nosso favor para progredir. E o mais importante: encontramos salas pelas quais não conseguimos avançar, levando-nos a questionar se teremos que procurar um caminho alternativo para desbloquear aquele caminho.
Esta filosofia de design – show, don’t tell – permeia as 2, 3 horas de jogo. À medida que resgatamos a possibilidade de nos transformarmos em lobo, morcego ou névoa, vemos sempre obstáculos que nos ensinam as possibilidades desta nova descoberta. Um novo método de progressão, imediatamente uma oportunidade para o colocar à prova. É assim que, embora com dificuldade ao início, fui ganhando maior conforto e confiança com Alucard, mesmo fazendo pouco dano em comparação com o princípio do jogo.
A atenção aos pormenores não se fica por aqui: porque nem todos os bosses são obrigatórios, nem todos os caminhos necessários. Symphony of the Night tem vários finais e recompensa os mais atentos e cuidadosos na investigação e exploração do castelo. Perto do meio do jogo, ganhamos a possibilidade de enfrentar Richter Belmont, protagonista do anterior Rondo of Blood, e se o fizermos logo, vemos uma cutscene com a destruição do castelo e os créditos.
Relembrando a intenção de Igarashi, paira no ar uma sensação de incerteza. Será que é mesmo só isto? Assim? E se explorarmos o castelo todo? A forma como este final, sem nos dizer que é um final incompleto, nos leva a questionar se fizemos meeeesmo tudo, é mais uma decisão de design deliciosa no que é já uma refeição gourmet. Porque se formos em busca de todos os cantos do jogo, encontramos bosses diferentes, que nos dão acesso a dois anéis (malta que esteja a jogar Vampire Survivors, vão achar isto familiar). As inscrições em cada um, embora crípticas isoladamente, parecem apontar para uma das salas quando lidas em conjunto.
Só assim desbloqueamos uma sala secreta, com Maria Renard, a rapariga que busca Richter ao longo do jogo e nos é oferecido um item sobre o qual ela não tem pista nenhuma, mas que nos permite “ver o que está escondido”. Symphony of the Night, através da sua estrutura diferente, do seu cold opener com Richter a derrotar Dracula e das várias mensagens de Maria que o procura, mostra-nos o que está escondido: o Belmont que aqui nos é apresentado não teria a personalidade para liderar o castelo das trevas.
É utilizando todas estas pistas contextuais que, se equiparmos os óculos, vemos uma bola verde em torno de Richter durante o combate e, se a tentarmos atingir, é-nos dada uma cutscene adicional com Shaft, o padre maligno que nos fora apresentado no jogo anterior. Este controlou Richter o tempo todo, revelando-nos que tudo o que fizemos até agora é só… metade.
A genialidade de Symphony of the Night brilha neste momento, com a revelação do Castelo Invertido: tudo isto não passa de uma tentativa de reviver Dracula, com um castelo ilusório a mascarar o real plano. E com ele, um castelo invertido na perfeição: as salas são as mesmas, os espaços são os mesmos, mas totalmente invertidos, numa obra artesanal desenhada com o maior pormenor.
Todos os segredos e cantos que vasculhámos no primeiro castelo servem-nos de guia para, agora com inimigos mais fortes, itens novos e 5 talismãs de Dracula que vamos encontrando, como em Simon’s Quest, acelerarmos não só o processo de exploração, mas recuperarmos os poderes iniciais para não tornarem o jogo obsoleto: são um upgrade e o desafio não desaparece.
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O castelo é rico em pormenores e detalhes visuais, dignos de uma obra de arte: muitas vezes vi-me obrigado a parar para observar, embasbacado, para os detalhes nas figuras esculpidas em vigas 2D, para a forma como, por exemplo, escadas em caracol eram representadas com recurso a puro engenho visual, sem que chegássemos às três dimensões. Como cada ambiente casa perfeitamente com a sua disposição geográfica: à medida que descemos, encontramos cavernas, catacumbas e armazéns de corpos. Se subirmos, encontramos igrejas, sinos, torres, bibliotecas, dormitórios… este é um castelo real, vivo, e impossível de recrear com tamanha perfeição.
Digo isto, porque depois de Symphony of the Night, atirei-me vorazmente para os títulos do GBA, um por um, até fazer 100% de todos. Embora divertidos e interessantes por si próprios, agora liderados diretamente por Igarashi, faltava-lhes a genialidade e simplicidade do título da Playstation. E não se enganem, não digo isto de forma leviana: este é um dos jogos mais importantes de sempre. Não deixa de ser absolutamente irónico que, à semelhança do level design, Symphony of the Night tenha começado a sua vida com pouquíssimas vendas. Foi através do word of mouth de quem mergulhava no castelo de Dracula que mais pessoas foram experimentando e comprando o jogo, dando-lhe perto de 700 mil unidades vendidas ao longo dos anos.
De jogo de culto a uma referência do género e um dos jogos obrigatórios em qualquer coleção, Symphony of the Night arriscou o que God of War conseguiu e Final Fantasy XVI almeja: utilizar o ADN da série para mudar tudo drasticamente, conseguindo mais que uma sequela: o melhor jogo da saga e provavelmente, um dos melhores de sempre. Contra mim falo, que me custa ainda ver a minha saga de RPGs favorita a avançar para hack and slash. Mas se Hagihara e Igarashi me provaram alguma coisa, é que a mudança é assustadora, mas é boa e por vezes traz-nos surpresas para a vida inteira.
Porque acreditem: se o Carlos adolescente soubesse que o Carlos adulto está a passar um Castlevania pela quarta vez seguida para fazer tudo o que há a fazer de novo, não acreditaria. Mas ainda bem que mudamos.