Criamos tecnologia para melhorar a vida das pessoas. Este é, de forma geral, o mantra de todas as grandes tecnológicas. Criam tecnologia que simplificam tarefas rotineiras, criam tecnologia que ajudam a ficar mais próximos daqueles de quem gostamos e criam tecnologia que dá aos mais desfavorecidos novas armas para reverterem a sua situação.
Empresas como a Google, o Facebook, a Apple, o Twitter, a Amazon e a Microsoft criaram equipamentos e serviços tão revolucionários que agora parece difícil imaginar a sociedade moderna sem a influência destas empresas. É verdade que mudaram o mundo, mas nem todos acreditam que tenha sido para melhor.
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Aos poucos este lado da resistência começa a ganhar cada vez mais adeptos. As grandes tecnológicas têm, mais do que nunca, uma grande influência nas nossas vidas – mas ao mesmo tempo essa influência tem sido, cada vez mais, explorada para fins muito questionáveis.
Estamos a entrar numa fase que nos EUA é apelidada de TechLash [Technology + Backlash] – um movimento de revolta contra a omnipotência das grandes tecnológicas. Recentemente o economista e especialista em globalização Richard Baldwin dizia ao jornal Público que “vai ocorrer uma revolta social contra a tecnologia”. Baldwin foi mais longe e disse que via esta revolta a acontecer “nos próximos três a cinco anos”, muito por causa da pressão que os avanços tecnológicos vão colocar nos postos de trabalho de milhões de pessoas em todo o mundo.
O mais provável é não termos de esperar tanto – o TechLash é real e já está a acontecer.
Há quatro grandes factores que ajudam a explicar esta posição melindrosa em que se encontram várias tecnológicas: a criação de monopólios; a disseminação de informação falsa; a questão relacionada com a falta de privacidade; e uma cada vez maior dependência, quase vício, que parece existir por parte das pessoas relativamente à tecnologia.
O número de dedos apontados aos executivos de topo das tecnológicas é cada vez maior e não é difícil de perceber porquê. Estarão os nossos gigantes a ganhar pés de barro?
Os monopólios
A Microsoft tem o monopólio dos sistemas operativos para computadores. A Google tem o monopólio dos motores de busca generalistas. O Facebook tem um semi-monopólio das redes sociais. A Google e a Apple têm um duopólio nos ecossistemas móveis. A Google e o Facebook têm um duopólio na área da publicidade digital. A Amazon é forte candidata a ter um monopólio na área do comércio eletrónico a curto prazo. E todas juntas, estas empresas detêm o grande monopólio dos dados.
Esta grande concentração de poder num grupo tão pequeno de empresas está a gerar uma preocupação cada vez maior, pois pode dar azo a situações de abuso de posição dominante – ainda que nem sempre estas situações se verifiquem, a verdade é que já houve exemplos e decisões regulatórias que comprovam alguns abusos.
São empresas que sabem perfeitamente como, quando, onde estamos e provavelmente a fazer o quê. O Facebook consegue saber quando os utilizadores mostram sintomas de depressão. A Amazon consegue saber os produtos que mais desejamos. A Google consegue saber as nossas questões mais íntimas, por muito que pesquise no modo anónimo do seu browser.
Jonathan Taplin, escritor norte-americano, lançou no ano passado o livro Move Fast and Break Things: How Facebook, Google and Amazon Cornered Culture and Undermined Democracy [Mexe-te rápido e quebra barreiras: Como o Facebook, a Google e a Amazon encurralaram a cultura e enfraqueceram a democracia, em tradução livre]. Na sua obra aborda justamente a ideia de que quando estas empresas falham, todos os utilizadores ficam expostos a essas falhas.
Porque se há vantagens inegáveis nos serviços que estas empresas prestam, também é inegável que há desvantagens. A questão da disseminação de informações falsas foi justamente um destes problemas e que ajudou a criar rastilho para o Techlash.
As fake news
Com apenas algumas dezenas de euros investidos na promoção de conteúdos é possível chegar a milhares de pessoas em redes sociais como o Facebook e o Twitter. Foi o que aconteceu durante as eleições presidenciais norte-americanas de 2016, tendo sido estas plataformas usadas por pessoas russas para fazer propaganda a favor de Donald Trump.
Já não estamos a falar do domínio da especulação, já estamos a falar do domínio das conclusões. O gestor de produto do Facebook, Samidh Chakrabarti, admitiu que pessoas de origem russa criaram mais de 80 mil publicações que chegaram até 126 milhões de pessoas só nos EUA no espaço de dois anos. Já o Twitter admitiu esta semana que 1,4 milhões de utilizadores foram expostos a publicações com origem russa e estima-se que existiam 50 mil bots russos a tweetar sobre as eleições nos EUA em 2016.
Além de aproveitarem o alcance gigante e rápido destas plataformas para passar mensagens enviesadas, também foram passadas informações simplesmente falsas, um fenómeno que ficou conhecido por fake news.
Mesmo sem recorrer a promoção paga, usando apenas as técnicas de crescimento orgânico, várias publicações de notícias falsas – mas que geram muito dinheiro em publicidade – conseguiram angariar audiências muito significativas. É aí que surge a questão: são as empresas detentoras das plataformas responsáveis pelos conteúdos que lá estão? Sim e não.
Sim no sentido em que têm a obrigação de proteger os seus utilizadores de conteúdos negativos, sejam fotografias violentas, comentários racistas ou informações falsas. Não no sentido em que se torna difícil controlar tudo o que é publicado nestas plataformas.
O que ficou provado, de certa forma, é que havia poucos mecanismos de defesa contra as fake news. Nesta área também a Google foi chamada à razão, depois de ter incluído no Google News publicações de notícias falsas, de ter dado destaque a conteúdos que não eram verdadeiros e de incluir no seu programa de publicidade publicações nada legítimas.
Muito disto aconteceu porque as plataformas das tecnológicas são geridas por algoritmos – e se tudo estiver de acordo com as boas regras dos algoritmos, então tem ‘via verde’ para existir naquelas plataformas. O que acontece é que os algoritmos ainda estão muito longe da perfeição e a curadoria humana continua a fazer a diferença, mesmo sendo também ela imperfeita.
A falta de privacidade
A frase é sobejamente conhecida: se não estás a pagar pelo produto, então o produto és tu!. Ao longo dos anos aumentou de forma considerável a quantidade de dados recolhidos por quase todas as empresas que operam na internet. Mas claro está, essa recolha de dados é ainda mais massiva e significativa quando essa empresa tem dois mil milhões de utilizadores como o Facebook ou 1,5 mil milhões de utilizadores como o YouTube.
A revelação dos programas de espionagem da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA na sigla em inglês), por parte de Edward Snowden, foi a prova que muitas pessoas precisaram para perceber que mesmo que não sejam as empresas a violar diretamente a privacidade dos utilizadores, alguém pode estar a fazê-lo de forma indireta.
As revelações de Snowden resultaram numa forte quebra na confiança junto das tecnológicas, ainda que essa quebra de confiança não tenha resultado numa diminuição do seu número de utilizadores – bem pelo contrário. Aliás, existem várias provas de como as tecnológicas mentem aos utilizadores e isso rapidamente é colocado atrás das costas.
Mas à medida que o tempo passa, que mais dados são recolhidos e que mais exemplos do mau uso destes dados vão surgindo, as pessoas começam a questionar mais a sua privacidade digital. Ainda que as pessoas nada façam nesse sentido, pelo menos do lado da Europa tem havido um endurecimento das regras, sendo a nova regulamentação geral da proteção de dados um desses exemplos, para restabelecer algum equilíbrio na questão da privacidade digital.
Com as tecnológicas a viverem, de certa forma, da falta de privacidade dos seus utilizadores, não é por isso de estranhar que pelo menos as pessoas que querem maior privacidade tenham uma posição mais dura relativamente ao trabalho de empresas como a Google e o Facebook, aumentando assim o Techlash.
O vício tecnológico
Quão importante é a tecnologia nas nossas vidas? Ao ponto da questão do vício tecnológico começar a ser debatida com maior frequência e ao ponto de haver quem considere que estamos a sair prejudicados, enquanto seres sociais e até na saúde, desta onda tecnológica.
Recentemente uma empresa que é investidora da Apple, a Jana Partners, enviou uma carta aos executivos da empresa a alertar para o facto de o iPhone estar a ser usado em demasia pelas crianças ao ponto de potencialmente ter impacto no desenvolvimento dos seus cérebros.
O diretor executivo da Salesforce, Marc Benioff, sugeriu há poucas semanas que as empresas que criam tecnologias com níveis de ‘adição’ sejam reguladas tal como empresas de sectores como o tabaco ou o álcool.
É neste ponto que está a discussão sobre a dependência das pessoas relativamente à tecnologia. Como é óbvio, tanto a Jana Partners como Marc Benioff provavelmente têm ‘agendas’ próprias nestas críticas que são endereçadas às grandes tecnológicas, mas ainda assim levantam questões relevantes.
Verificamos o nosso smartphone dezenas de vezes ao dia. Passamos largos minutos nas aplicações que lá estão instaladas. Quando não estamos no smartphone é provável que estejamos no computador, numa consola ou em frente a qualquer um outro ecrã.
Casos concretos
O Techlash não é apenas mais uma buzzword para definir alguma tendência elitista: é provavelmente um sentimento negativo relativamente às tecnológicas que vai piorar daqui para a frente.
Recentemente tivemos dois casos concretos de como o Techlash é muito mais do que uma hashtag ou uma palavra para destacar em artigos. O ano de 2017 foi terrível para o Facebook, que se desdobrou inúmeras vezes em desculpas por vários erros que cometeu. O ano de 2017 também não foi especialmente favorável para o YouTube e 2018 começou ainda pior.
Por causa de pequenos erros, que são cometidos com cada vez maior frequência devido à escala massiva de alguns serviços, as críticas às grandes tecnológicas amontoam-se.
A Amazon, por exemplo, tem sido acusada nos EUA de ser responsável pelo fecho de várias empresas, que não conseguem ser competitivas. Já aqui vimos que muitos executivos norte-americanos não ‘dormem’ por causa da Amazon. E mesmo sendo um dos maiores empregadores do país – a questão das condições de trabalho fica para uma outra discussão -, continua a amealhar críticas.
Na área da concorrência e na luta contra os abusos, a Europa tem sido um exemplo de um campo no qual as tecnológicas já não estão totalmente confortáveis. Sob a batuta da comissária europeia Margrethe Vestager, tanto a Apple como a Google já viram ser tomadas decisões contra algumas das suas ações – abuso fiscal, no caso da Apple, abuso de posição dominante, no caso da Google.
O braço de ferro contra as posições dominantes das grandes tecnológicas tem escalado ao ponto de se falar na possibilidade de algumas das grandes empresas serem obrigadas a enfrentar uma divisão – a Google separar-se do YouTube ou o Facebook separar-se do Instagram, por exemplo.
Falar em divisões pode parecer um ato desesperado, sobretudo quando foram os reguladores que permitiram a criação destes enormes conglomerados de dados. Quando o Facebook comprou o Instagram e o WhatsApp, a rede social não era propriamente pequena – e quando há alguém que oferece luta, então copia-se a receita do sucesso. A luta parece muito desequilibrada.
Talvez não seja necessário chegar ao ponto de ‘partir’ as grandes tecnológicas – em décadas anteriores falou-se em cenários semelhantes para a Microsoft, por exemplo, ainda que não se tenham concretizado. Mas grandes problemas exigem grandes medidas e o simples facto de esta hipótese já ter sido falada, mesmo que fora dos reguladores, é por si só um sinal dos tempos em que vivemos.
Crédito imagem de destaque: Freepik com edição Future Behind
Crédito imagens do texto: Hand Drawn Goods, Flaticon