O distinto caso da LeEco

Não é todos os dias que ouvimos uma empresa dizer que está a crescer demasiado. Foi justamente isso que aconteceu no início de novembro com a LeEco. Na prática o diretor executivo da tecnológica chinesa, Jia Yueting, admitiu que a sua empresa não tinha dinheiro para aguentar a expansão agressiva que estava a protagonizar.

Pode parecer estranho este conceito no qual uma empresa perde as rédeas da sua própria estratégia de crescimento. Mas o caso fica ainda mais estranho pois a carta que o CEO da LeEco escreveu para os seus funcionários foi enviada quase três semanas depois de a empresa ter feito um grande evento nos EUA para anunciar o lançamento de vários produtos.



Não saberia já Jia Yueting antes da entrada nos EUA que não havia dinheiro para tal? Se soube, porque avançou na mesma? Se não sabia, como era possível não saber que a sua própria empresa não tinha dinheiro para aguentar a expansão que planeara?

“Nenhuma empresa teve tal experiência, um tempo de fogo e gelo ao mesmo tempo. Avançámos cegamente e as nossas necessidades de dinheiro aumentaram. Fomos além dos limites na nossa estratégia global. Ao mesmo tempo, os nossos capitais e recursos eram na realidade limitados”, escreveu Jia Yueting na carta, citado pela Bloomberg.

Estas declarações são um claro mea culpa feito pelo CEO que cortou o seu salário para apenas um yuan – o equivalente a 13 cêntimos – para provar o seu compromisso com o projeto.

LeEco é uma abreviatura de Le Ecossystem

Mas para perceber melhor como é que a LeEco chegou a esta posição, convém perceber o que é e o que faz esta empresa de novas tecnologias.

O que é a LeEco

Não são muitas as referências que existem na internet relativamente ao passado da empresa e isto acontece por só nos últimos anos ter começado a ganhar uma dimensão que vai além do mercado interno. Pois na China a LeEco é bastante conhecida.

A LeEco como marca nasceu oficialmente em janeiro de 2016, altura em que decidiu fazer um rebranding. A génese da empresa remonta no entanto a 2004, na altura apenas dedicada a um serviço de distribuição de filmes, séries, concertos e também eventos desportivos, um pouco ao estilo do Netflix, mas com uma maior abrangência.

A LeTV, como era então conhecida, teve uns primeiros anos discretos, mas depois acabou por conseguir a atenção dos consumidores. Em 2010 a empresa chegava à bolsa de valores chinesa já com um vasto catálogo de conteúdos no seu serviço de streaming e com uma base sólida de clientes na China. Atualmente tem 350 milhões de subscritores, dez mil séries e cinco mil filmes para distribuir, salienta o Android Central.

O bom desempenho no segmento de conteúdos levou a empresa a querer apostar em novas áreas. Em primeiro lugar a LeTV [futura LeEco] começou por apostar na criação de conteúdos próprios. Dos conteúdos passou para as aplicações móveis e daí passou para o segmento do hardware, explica a publicação Allchinatech.

Em 2013 a tecnológica decidiu entrar no segmento dos televisores inteligentes com a marca LeTV. Só mais recentemente é que começou a integrar outros mercados: a LeEco tem bicicletas, set-top boxes, óculos de realidade virtual e smartphones, tendo ainda planos para a construção de carros.

Esta expansão agressiva em diferentes segmentos tem, como é óbvio, o seu peso. Entrar em qualquer mercado de hardware envolve um investimento inicial substancial, ainda para mais se estivermos a falar do sector automóvel.

A questão é que a LeEco optou por uma estratégia agressiva de preço, isto é, prefere vender mais dispositivos com uma margem de lucro pequena ou inexistente, tudo com o intuito de recuperar valor através da subscrição dos seus serviços.

Tudo o que a empresa vende tem como objetivo final aumentar o número de subscrições dos seus serviços digitais. Em certa medida a LeEco tem um modelo de negócio parecido com o da Amazon: ambas as tecnológicas promovem uma subscrição anual que depois garante aos consumidores acesso a uma vasta gama de conteúdos, sejam filmes, séries ou músicas.

No caso específico dos veículos, o carro da LeEco chama-se LeSee. A primeira versão foi apresentada em abril durante a feira de automóveis de Pequim, na China. Já o LeSee Pro foi revelado nos EUA no tal evento pomposo de outubro.

O The Verge faz uma descrição curiosa sobre o veículo dizendo que apesar de ter um aspeto futurista, o próprio carro também parece estar construído numa linguagem que parece indicar que nunca irá ser produzido em massa. A própria revelação do veículo esteve envolta em alguns contratempos, como escreve a publicação norte-americana.

Além da aposta própria, a LeEco é ainda um dos investidores na empresa Faraday Future, uma nova marca de automóveis 100% elétricos e que vai avançar para a construção de uma fábrica automóvel de mil milhões de dólares no Nevada. Ou ia. Este mês foi confirmado que o empreendimento está parado, com a Faraday Future a ligar este acontecimento às declarações do CEO da LeEco, salienta a BBC.

Justamente nesta notícia da BBC é ainda dito que outra empresa no qual a LeEco tem uma grande participação 28,9% -, a Coolpad, sofreu hoje uma quebra de 10% no valor das ações. Ou seja, mais dinheiro perdido para a gigante chinesa.

Neste artigo do Android Central pode ficar a conhecer com mais pormenor todas as áreas de negócio da LeEco: mas vá com tempo, pois há muito para ler sobre a empresa chinesa.

A importância do mercado norte-americano

Ainda que a China seja um dos maiores mercados de consumo de eletrónica do mundo e que a Índia tenha ainda muito terreno por desbravar neste sentido, a LeEco está a tentar colocar um pé nos EUA. A empresa sabe que precisa de conquistar os consumidores norte-americanos se quiser tornar-se de facto numa referência global em diferentes segmentos tecnológicos.

Os conteúdos são o fio condutor das diferentes apostas da empresa. #Crédito: LeEco

Veja-se o exemplo da Huawei: tem boas vendas na China e na Europa, tendo vendido mais de cem milhões de smartphones este ano, mas continua sem conseguir ‘quebrar’ o mercado norte-americano. E este é um factor que tem impedido a tecnológica chinesa de ser ainda maior do que já é.

A dificuldade chamada EUA foi um dos principais motivos para a LeEco ter comprado o fabricante norte-americano de televisores Vizio. O negócio avaliado em dois mil milhões de dólares colocou automaticamente a empresa chinesa com uma presença nos EUA e num segmento crítico para as suas intenções a longo prazo.

Foi uma entrada estratégica, mas que a empresa precisa de saber capitalizar. Nos EUA já existem vários serviços de distribuição de conteúdos como o Netflix, o Hulu ou o HBO Go, pelo que o trabalho para conquistar mercado vai ser muito mais difícil do que no mercado interno. Ter televisores próprios vai ajudar, mas não será suficiente.

A compra da Vizio gerou ainda notícias que se espalharam pelos quatro cantos do mundo, pelo que se nunca tinha ouvido falar da LeEco até então, a marca pelo menos aumentou e bem as hipóteses de ser reconhecida.

Viver numa bolha

Em termos de negócio o que a LeEco está a fazer é uma técnica comum: as empresas investem bastante dinheiro durante um período de tempo para que possam recolher os lucros a médio e longo prazo. A Amazon lutou durante anos com os investidores neste sentido e só recentemente os resultados têm chegado. As consolas de videojogos são vendidas com margens reduzidas para que a capitalização venha da venda dos videojogos em si. Durante largos anos o Twitter sobreviveu perfeitamente sem dar lucro.

Mas também é verdade que nenhum dos exemplos referidos teve uma expansão tão louca como a LeEco. São muitos os segmentos de mercado que a empresa chinesa está a atacar. A compatriota Xiaomi também desenvolve uma grande variedade de gadgets, mas no caso da Xiaomi os últimos equipamentos até já têm sido desenvolvidos em parceria com novas empresas, o que ajuda a mitigar os riscos.

Fazer um investimento acima da média para só conseguir um retorno a médio prazo é algo que pode colocar muita pressão em cima das empresas. E a LeEco, através da carta do seu fundador, parece simplesmente ter cedido à pressão.




É que além deste lado mais visível da empresa, alegadamente a LeEco tem de saber viver com uma gestão arriscada de ativos.

No artigo da Bloomberg sobre os cortes anunciados na LeEco, a agência de notícias dá conta da existência de ‘opacidade’ na forma como a tecnológica chinesa consegue financiamentos para as suas novas divisões. Ou seja, nem sempre é explícito de onde vem o dinheiro e como é aplicado. O argumento ‘o segredo é a alma do negócio’ seria suficiente para calar os mais críticos, mas práticas de ‘opacidade’ são sempre vistas com alguma desconfiança no mundo financeiro.

A Bloomberg também diz que a LeEco consegue algum dinheiro através de empréstimos de equity, querendo isto dizer que além de ter de devolver o dinheiro, vai garantir ainda ao ‘investidor’ uma participação na empresa.

Por fim existem rumores de que a LeEco tem acumulado uma dívida significativa nos últimos anos. Este tema motivou mesmo uma troca de palavras públicas entre a LeEco e a Xiaomi: a primeira negou as acusações que a segunda fez.

A publicação Allchinatech dá conta do facto de o CEO da LeEco ter procedido a duas vendas de ações durante o ano de 2015 para poder injetar dinheiro nas novas divisões da empresa sem qualquer contrapartida.

Este último facto parece indicar que a LeEco já está há alguns meses a viver no limiar das suas possibilidades.

Não será de espantar que algumas destas aventuras da LeEco – carros autónomos, bicicletas inteligentes – acabem por desaparecer com o tempo. O que será interessante perceber é se a gigante chinesa vai conseguir sobreviver a este período mais frágil sem colapsar definitivamente e se a aposta no mercado norte-americano vai trazer o retorno esperado.

Rui da Rocha Ferreira: Fã incondicional do Movimento 37 do AlphaGo.
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