Se o Bitcoin está a ser o grande fenómeno tecnológico de 2017, as Initial Coin Offerings (ICO) provavelmente são o grande fenómeno financeiro do ano. O termo, que pode ser traduzido em português como Oferta Inicial de Moedas, refere-se a um formato emergente de angariação de capital através da emissão de criptomoedas ou tokens.
O processo funciona da seguinte forma: uma empresa desenvolve um projeto, na maioria dos casos em blockchain, que tem associado um ativo digital (token). O que a empresa faz é vender este ativo digital a troco de criptomoedas – Bitcoin, Ethereum ou outras -, criptomoedas estas que vão ser usadas para financiar o desenvolvimento do projeto.
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Os ICO são uma mistura entre o conceito de financiamento mais tradicional de startups e o conceito de crowdfunding, pois ao investir num ICO estará a garantir parte do produto que vai resultar do nascimento dessa empresa.
Esta metodologia de financiamento tornou-se muito popular ao longo do último ano por vários motivos: em primeiro lugar por facilitar o típico processo de financiamento não só para quem procura receber capital, mas também para quem está interessado em investir – na prática qualquer pessoa pode participar num ICO, desde que tenha criptomoedas para fazê-lo; o interesse nos ICO também aumentou devido ao aumento de interesse nas criptomoedas e à valorização global deste mercado – em bom rigor, muitos estão a investir em ICO na esperança de conseguirem agarrar antes de todos os outros aqueles tokens que podem ser o próximo Bitcoin.
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Um estudo apresentado em outubro pela Mangrove Capital, uma empresa de investimento, concluiu que houve um retorno médio de 1.300% para quem participou em ICO no ano de 2014, como explica o Business Insider. Ou seja, por cada euro investido essas pessoas ganharam 1.300 euros.
O facto de a mais popular das criptomoedas, o Bitcoin, estar a atravessar um período de grande valorização, também é outro elemento que leva as jovens empresas a apostarem em ICO: imaginando que amanhã angariam um milhão de dólares em Bitcoin através de um ICO, daqui a uma semana esse valor pode ser de cinco milhões de dólares, devido à valorização da criptomoeda após a angariação de capital. Por outro lado, nada invalida que daqui a duas semanas aquele milhão também possa valer apenas 100 mil dólares fruto de uma possível desvalorização.
Esta roleta russa do investimento não assusta os investidores, que estão conscientes de que independentemente do formato escolhido para investir há sempre um risco associado. Prova disso é o facto de em 2017 o valor de financiamento aplicado em ICO ter ultrapassado pela primeira vez o valor de financiamento aplicado através de venture capital. Dados da Goldman Sachs mostram de forma mais detalhada esta evolução.
Olhando para o gráfico de monitorização de ICO da publicação Coindesk, vemos que de facto está a ser investido muito dinheiro por meio de Initial Coin Offerings. Empresas como a Tezos e a Filecoin conseguiram inclusive ICO chorudos, de 232 e 262 milhões de dólares, respetivamente.
“É uma forma fácil e simples para angariar dinheiro, mesmo que não tenhas um plano de negócios ou um produto. É por isso que eclipsou temporariamente o venture capital e outras formas de financiamento mais tradicionais. É uma forma de as startups passarem ao lado do ecossistema tradicional de investimento, pois se alguém aqui já o fez, sabe que é limitado. Isto pode acabar por ser bom”, disse a editora da publicação CoinDesk, Noelle Acheson, durante uma passagem por Lisboa a propósito do Web Summit.
“Apenas 1% ou 2% das startups têm acesso a venture capital. Começamos a ver o crowdfunding e isto [ICO] é o próximo passo, as pessoas que estão a investir no projeto querem mesmo participar, além de terem acesso ao produto. Penso que é excitante, é impactante”, disse a fundadora do fundo de investimento FuturePerfect Ventures, Jalak Jobanputra, no mesmo painel de discussão.
Mas nem tudo é um mar de rosas neste universo dos ICO. O que por um lado torna os ICO num instrumento de angariação de capital com grande potencial, também é motivo para gerar preocupação.
Os riscos associados
Não é só a possibilidade de as criptomoedas angariadas desvalorizarem da noite para o dia que pressupõe um risco na realização de ICO – ainda que este risco acarrete maior peso para a empresa que angariou o capital, uma desvalorização agressiva pode colocar em causa a concretização do projeto e por consequência o investimento feito pelos investidores.
Como a angariação de capital é feita diretamente entre os investidores e as empresas, sem intermediários, e por este investimento ser feito em criptomoedas, instrumentos de valor descentralizado, imutável e sem regulação, existem preocupações válidas ligadas aos ICO.
Imaginando que participa num ICO e depois o promotor do ICO simplesmente não cumpre com o projeto prometido, pode tornar-se muito difícil reaver o dinheiro investido. Se não tiver cuidado, tudo pode ser uma fraude. E nem mesmo os tribunais poderão ser úteis – um esquema fraudulento de criptomoedas bem desenhado pode tornar-se quase impossível de rastrear.
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“Existem muitos esquemas relacionados com ICO, projetos sem um protótipo funcional, só com um white paper. Não é assim que funciona. Não consegues ganhar credibilidade se não tiveres um produto que funciona”, alertou o diretor financeiro da Finom, Denis Suslov, durante uma das suas intervenções na Blockspot Conference, realizada em Lisboa no mês de novembro.
“Um bom ICO é aquele em que tem uma boa base de utilizadores ou que mesmo não sendo rentável, é útil para a comunidade. Há muitos projetos atualmente que prometem grandes retornos, mas as pessoas nem se preocupam em perceber o projeto”, acrescentou o especialista.
Nuno Correia, o diretor executivo da Utrust, empresa suíça criada por quatro fundadores portugueses e que realizou recentemente um ICO, partilhou nesse mesmo evento alguns sinais aos quais vale a pena estar atento enquanto investidor num ICO: quem é a equipa que está por trás do projeto? Tem credenciais no mercado? Tem programadores para desenvolver o projeto? Tem uma equipa legal para o caso de o enquadramento ficar mais rígido? Quais as suas motivações? Qual a dedicação ao projeto?
“Muitas pessoas que estão a chegar ao mundo dos ICO, é tudo sobre o dinheiro e a ganância. No final do dia tens de ver, tens de acreditar, tens de verificar os factos por ti próprio. Existe um grande risco associado aos ICO. É algo que ainda não está maduro. (…) No futuro, com regulação e mais informação, será menos arriscado investir em boas ideias”, referiu o CEO da Utrust.
Paulo Trezentos, diretor executivo da Aptoide, empresa que também está a realizar uma angariação de capitais através de um ICO, salientou por seu lado o facto de atualmente existir muito “barulho” em torno dos ICO e que quem procura este método deve saber superar este problema. “Se os ICO são uma bolha, não vai rebentar, vai mover-se e pelo caminho vai mandar sinais para todos”.
Por exemplo, a Aptoide foi informar-se junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários relativamente ao processo de ICO e aquilo que ouviu do regulador foi uma preocupação relativamente aos pequenos investidores. “A CMVM está preocupada com a informação que é passada aos pequenos investidores. Tens de perceber o valor da rede e de tens de providenciar informação aos pequenos investidores”, disse Paulo Trezentos durante a Blockspot Conference.
Parte deste trabalho de construção de credibilidade passa também pela qualidade dos projetos, algo que ainda não se verifica devido ao facto de as tecnologias de blockchain estarem numa fase muito inicial de desenvolvimento e adoção. Vitalik Buterin, fundador do Ethereum e uma das figuras mais proeminentes no universo do blockchain e das criptomoedas, não tem dúvidas em dizer que 90% dos ICO feitos sobre a tecnologia do Ethereum vão falhar.
“Estamos, basicamente, na era dos tokens 1.0. Existem algumas boas ideias, existem muitas más ideias, existem muito, muito más ideias e também alguns esquemas fraudulentos. Espero que os tokens 2.0 e o tipo de coisas que as pessoas vão começar a construir em 2018 e 2019 sejam substancialmente de qualidade superior”, disse na hackathon ETHWaterloo, realizada no Canadá em outubro.
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Além da melhoria da qualidade dos projetos, muitos acreditam que os ICO serão encarados de forma mais séria quando existir regulação específica para este modelo de financiamento, tal como já existe por exemplo regulação para o crowdfunding.
Uma questão de nome
Há vários especialistas em blockchain, criptomoedas e ICO que estão contra a própria definição de Initial Coin Offering. Porquê? Porque este termo remete para um movimento empresarial e financeiro que é fortemente regulado, as Ofertas Públicas Iniciais (IPO), que marcam a entrada das empresas na bolsa de valores.
“Não vamos querer usar linguagem que leve os compradores a pensar num aspeto legal que possa estar associado”, disse o fundador da Ethereum Project e da ConsenSys, Joseph Lubin, na sua participação no Web Summit.
“ICO é um termo ridículo para aquilo que está a acontecer. O ICO é um nome estúpido, pois é parecido com IPO, que é altamente regulado. A parte do token digital é a funcionalidade interessante neste novo conceito, mais do que a moeda ou a própria parte do ICO”, defendeu Noelle Acheson.
A editora do CoinDesk está convencida que a longo prazo o termo Initial Coin Offering acabará por dar lugar ao termo Token Generation Event (TEE), um evento gerador de tokens numa tradução livre. Em certa medida este termo também seria mais rigoroso, pois muitas das criptomoedas que existem no mercado nem sequer são verdadeiras moedas criptográficas, são ativos digitais associados um a projeto tecnológico e não têm qualquer objetivo de funcionar como uma moeda para a internet.
Enquanto a definição do termo é discutida, há quem peça uma regulação efetiva aos ICO pelos motivos já descritos. Também há quem defenda que não é necessária regulação adicional, pois as regras que existem para os valores mobiliários e para o crowdfunding enquadram a esmagadora maioria dos ICO. O que pode vir a ser necessário é regulação para casos específicos de ICO que além de criptomoedas, envolvam também o dinheiro fiduciário.
“Se esperares até que a regulação fique madura, então nunca terás um ICO”, considerou Denis Susnov.
Foi um pouco esta ideia que levou os projetos Utrust e AppCoins a fazerem os seus ICO na Suíça e em Singapura, respetivamente. Na prática ninguém quer ser surpreendido por possíveis regulações locais e que não sejam abrangentes e compreensivas. Basta pensar no caso da Uber: como não há legislação própria em Portugal, então a atividade da empresa é considerada ilegal.
“Há muito dinheiro a ir para projetos que não têm grande fundamento por trás. Os reguladores vão querer tomar atenção a isto, nem que seja pelo risco envolvido”, defendeu Noelle Acheson.
Outro dos cenários que começa a ganhar formato para atenuar efeitos especulativos é a criação de ICO com regras associadas. Por exemplo, o investidor apenas pode vender parte dos tokens comprados ao fim de dois anos, mantendo assim um compromisso mais duradouro com o projeto e não estando apenas interessado na movimentação de ativos digitais. Estas regras tanto poderão ser definidas por um regulador como pela própria empresa promotora do ICO.
Mas se é para existir regras, então essas regras têm de ser de implementação rápida, como avisa Denis Suslov. “Os governos estão a jogar o jogo do apanha, não faz sentido banir os ICO. (…) Quando os governos perceberem o enquadramento legal das criptomoedas, já estaremos em algo completamente diferente. Dois meses no espaço das criptomoedas são como dois anos, os governos devem ser rápidos em integrar estas áreas”.
No caso específico de Portugal não existe ainda regulação própria para as criptomoedas ou para os ICO, mas já existe regulação para os valores mobiliários e também para o crowdfunding, algo que pode representar algum conforto para quem procura este sistema de financiamento.
Por outro lado, o facto de os ICO e das próprias criptomoedas serem um fenómeno global e não apenas local acaba por colocar em causa as leis que existem num determinado país. “As leis são geográficas e o blockchain é global, portanto nunca conseguirão atingir o que querem. No final falar de blockchain é muito genérico. Existem casos muito diferentes, existem ICO, existem diferentes protocolos. A regulação específica só vai chegar para casos específicos, em que as criptomoedas vão trabalhar com dinheiro fiduciário”, considerou o diretor jurídico do Dash, Fernando Gutierrez. “Já existem muitas leis para perseguir as pessoas que são fraudulentas”, acrescentou no evento Blockspot Conference.
“Ninguém vos vai proteger no blockchain, vai ser como na internet. As pessoas precisam de aprender a protegerem-se sozinhas, não podem contar com os governos para isto. É um espaço no qual precisamos de aprender a proteger-nos sozinhos”, avisou Fernando Gutierrez ainda a propósito dos ICO.
Para o caso de ponderar investir num novo projeto ao participar num ICO, tenha este elemento como ponto de consideração inicial para a sua decisão: os utilizadores devem investir nos tokens pela utilidade da plataforma e não pelas promessas que são feitas em torno desse projeto. A partir daqui estará por sua conta e risco.