Pokémon Scarlet, muito como a premissa escolhida para a 9ª geração, é um paradoxo para mim, um que não sei bem ainda se consigo explicar, mas cá vai: este é o jogo Pokémon que mais me divertiu desde a 5ª Geração e, ao mesmo tempo, o pior jogo Pokémon da saga principal.
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Bem-vindos a Paldea
Recentemente, tornou-se popular o discurso de que Pokémon nunca tenta sair da fórmula vigente – criança com mãe explora mundo cheio de monstrinhos e recolhe 8 crachás de ginásio, derrota equipa vilã e captura Pokémon lendário. Mas um olhar atento ao legado da saga permite-nos ver pequenas alterações e tentativas de refrescar este modelo desde Unova.
Pokémon Scarlet, nesse sentido e em linha com o discurso online, é provavelmente o título mais fraturante da saga, se não contarmos com Pokémon Legends: Arceus. É a primeira vez que Pokémon se arrisca num mundo aberto, inserido numa premissa narrativa infanto-juvenil: vamos a uma academia para treinadores Pokémon que, todos os anos, tem uma iniciativa extra-curricular chamada Treasure Hunt que permite aos alunos explorar a região toda e completar desafios que lhes permitam ter experiência de vida e de… “trabalho”.
Parece estranho conjugar verbos que estariam mais corretos numa apresentação sobre empreendedorismo, mas a Game Freak tentou criar uma região que, em linha com o que já tinha sido feito por outra equipa em Legends: Arceus, se sentisse viva, real, com personagens sólidas a coexistirem.
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Este é o ponto mais forte, aliás, de Pokémon Scarlet. O elenco reunido para a nossa aventura é, mas de muito longe, o mais bem escrito, divertido e interessante num jogo Pokémon. Os líderes de ginásio são altamente carismáticos e todos com um papel importante na cidade onde habitam, sem serem apenas o boss que nos aguarda. A Elite Four, desta vez, surge bem cedo e vai interagindo connosco progressivamente, alimentando o desejo de os enfrentar e ao mesmo tempo, conhecê-los melhor.
Os nossos “rivais” e amigos falam, finalmente, como adolescentes e relacionam-se entre si de forma carinhosamente dorky, porque cada um, à sua maneira, é completamente apaixonado por uma faceta de Pokémon: relacionando-os, imediatamente, não só com os adultos que levam 26 anos desta saga, como com os jovens que encontram aqui um espaço de normalidade para o seu carinho e afecto com Pokémon.
É uma excelente forma de nos ligar emocionalmente às personagens e, desta vez, de nos poupar a linhas e linhas de diálogo sensaborão, sem personalidade, num sem fim de cutscenes. Curiosamente, para um jogo que até introduz uma história global bastante robusta, repleta de pequenos arcos narrativos integrados, o texto narrativo e a exposição são mantidas num mínimo digerível para uma franquia que não é de todo conhecida pela riqueza do guião.
O papel da Team Star, a equipa de arruaceiros de Pokémon Scarlet, também acaba por ser muito mais diluído e inofensivo que noutros jogos: são um grupo de miúdos que faltam à escola e tentam mostrar-se os líderes da academia através da força e dos números, com um ângulo narrativo muito querido e até didático, demonstrando uma sensibilidade e capacidade de tímida integração louvável da equipa da Game Freak.
Isto porque, em Pokémon Scarlet, não temos um caminho “linear”, temos três: O caminho tradicional dos 8 ginásios e eventual Elite Four, o caminho dos Pokémon Titãs com Arven e o caminho da Operação Starfall, contra a Team Star. Não temos que escolher um até porque para terminarmos o jogo precisamos de concluir os três, mas a ordem pela qual avançamos cada história é deixada ao nosso critério.
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E introduzo isto aqui porque o caminho com Arven é, mesmo com este foco numa narrativa infanto-juvenil, o mais adulto que a saga tentou até ao momento. Pela primeira vez somos confrontados com os conceitos de perda, da finitude e da idade, e do nosso papel não só de conforto mas também de confronto, para mudar o possível.
Nemona, a nossa rival mais tradicional, fecha o elenco e apresenta-se como uma espécie de Goku: feliz pelo nosso crescimento e ansiosa para poder lutar contra Pokémon e treinadores mais fortes, para continuar a crescer. É uma aposta refrescante pela personalidade, super assertiva e capaz de comandar respeito por toda a região, até dos seus líderes mais fortes, sem nunca parecer demasiado agressiva.
Se o jogo estivesse 100% dedicado a este delicioso grupo de personagens e sociedade que construiu, não teríamos que seguir para o resto da análise. Porém, o problema mais bicudo de Pokémon Scarlet é justamente esse: isto são, apenas, 20% da totalidade do jogo.
Um enorme mapa vazio.
Os restantes 80% são passados no loop de jogabilidade tradicional de Pokémon: apanhar novos monstros, treiná-los, obter as suas evoluções. Nos jogos anteriores, a linearidade introduzida no scenario planning permitia atenuar o efeito de repetição desta decisão. Passávamos por routes completamente distintas, recheadas de treinadores novos, pequenos espaços escondidos que pediam a nossa resolução com HMs que poderíamos ou não ter na nossa posse para alcançar dungeons opcionais (Wayward Cave em Pokémon Diamond / Pearl, Abandoned Ship em Pokémon Ruby / Sapphire) e Pokémon que só se encontravam nesses espaços.
Esta exploração e level design foi-se esbatendo a partir da 6ª geração, tornando o processo muito mais alicerçado em corredores de conteúdo: seguimos sempre em frente, com o ocasional treinador / item / TM perdido noutra esquina do caminho. Isto deve-se, sobretudo, à tentativa de simplificação da jogabilidade, anunciada por Junichi Masuda, para que a mesma se torne mais acessível para todas as idades e jogadores.
Pokémon Scarlet, com o elemento do mundo aberto, leva ironicamente a linearidade ao extremo, tornando-a absolutamente vazia e ausente de qualquer tipo de conteúdo. Literalmente. Se em Pokémon Legends: Arceus o gameplay loop de exploração dum mundo vazio resultava porque, narrativa e mecanicamente, somos convidados a capturar mais versões dos mesmos Pokémon, a explorar os cantos do mapa com sidequests e diversas caçadas de Elite, bem como na pesquisa dos monstros lendários… em Pokémon Scarlet, vemos este template aplicado mas como um trabalho de casa mal copiado: só estão as estacas.
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De facto, temos algumas centenas de espécies para capturar e evoluir, itens espalhados pelo mapa para apanhar – divididos entre itens de combate, itens de medicina e TMs – e Pokémon Raids, à semelhança da mecânica introduzida em Sword & Shield: monstros mais fortes que o habitual que, ao serem vencidos, garantem-nos as Exp Candies que fazem um regresso neste jogo, tornando o processo de evolução e captura ainda mais célere.
Mas é isto. É literalmente, só isto. Quando falamos em mapa vazio, é literalmente um asset a fazer de chão pintado a verde esbatido para simular relva, com constantes pop-in de Pokémon que aparecem e desaparecem sem deixar rasto, sem um elemento decorativo, sem direção artística, sem nenhum incentivo narrativo ou espacial para nos convidar à exploração: são sempre os mesmos campos, ora com neve, ora com relva, ora com areia, com Pokémon diferentes e treinadores que volta e meia surgem, agora opcionais, o que muitas vezes nos faz esquecer completamente da sua existência, não fosse pelos desafios lançados nos Pokémon Centers.
A juntar ao mapa absolutamente lastimável está um jogo que, de forma alguma, se sente acabado na sua totalidade. Os erros gráficos são uma absoluta constante, a colisão dos cenários que nos arrasta para debaixo do chão acontece combate sim, combate não, a lentidão de processos é absolutamente sofrível, até porque desde a 4ª geração que não tínhamos um flow de combate tão lento e pesaroso.
E para agravar este ramalhete de caules despidos, depois da refrescante surpresa na UI de Pokémon Legends: Arceus, repleta de vida, animações e fonts interessantes, bem incorporadas com o tema do jogo, passamos para uma UI tão estéril, tão aborrecida, que ninguém vos censurará se pensarem que estão a jogar Pokémon Showdown no vosso browser e não a nova geração da saga mais rentável do Planeta.
Estes elementos são imperdoáveis, não obstante o sucesso estrondoso deste título, um dos jogos mais bem-sucedidos de sempre da Nintendo. Principalmente porque contribuem, como uma organização sinistra, para afundar as excelentes decisões de jogabilidade e o gigante coração de Pokémon Scarlet.
Oh? Pokémon Scarlet is evolving!
Porque a jogabilidade central de Pokémon Scarlet, o combate, dá um passo à frente e torna o seu aspecto competitivo ainda mais aliciante. De regresso está a visão gráfica da natureza dos nossos Pokémon e como afeta as habilidades, bem como o impacto que os EVs têm em cada um dos nossos atributos.
A isto, junta-se a melhor inovação de Pokémon Legends: Arceus: o fim dos golpes esquecidos para sempre. Tal como no spin-off, podemos, a qualquer momento e sem recurso a nenhum NPC como antigamente, mudar os nossos golpes consoante o momento do jogo e a build pedida.
Não só facilita o processo competitivo como traz, ainda, um leque de opções maiores para criar equipas com vários elementos de rotação, consoante o moveset que quisermos aplicar. É também a oportunidade de experimentarmos sem compromisso novos Pokémon, testar as suas capacidades e golpes novos. Porque, a somar a esta facilidade de processos para o aprimorar da nossa equipa, regressa também o sistema de item crafting: desta vez, ligado aos TMs.
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Cada Pokémon selvagem, ao ser derrotado, deixa determinado componente que depois é utilizado para criar TMs nos Pokémon Center. Vamos desbloqueando novos TMs à medida que completamos as raids da Team Star, outra nova mecânica acoplada à ação Let’s Go: podemos, agora, soltar os nossos Pokémon a qualquer momento do jogo e lançá-los em batalhas automáticas. A experiência é menor e não nos dá EVs, mas é muito mais rápida para recolher componentes e obrigatória na evolução de determinadas espécies.
Por fim, temos a versão desta geração da Mega Evolução: A Terastallização. Apesar do nome complicado, o conceito é bastante simples: é a possibilidade de mudarmos, durante um combate, o tipo de um dos nossos Pokémon. A vertente mais interessante deste conceito é que, de forma aleatória, encontramos Pokémon selvagens já em processo de Terastallização com tipos diferentes aos seus nativos.
Ou seja, é possível encontrarem, de forma aleatória, um Growlithe, Pokémon de tipo fogo, fraco contra água, com uma Terastallização para o tipo dragão ou erva, resistentes a água. As Raid Battles são também com estes Pokémon com tipos surpreendentes de Terastallização, ao que tudo indica, gerados de forma aleatória, pelo que o layer estratégico que lhe está associado é super rico e rejuvesnece o sistema de combate sem precisar duma layer de alteração de atributos, como os Z-Moves ou o Dynamax.
Voltando um pouco atrás: as raids da Team Star funcionam em duas fases. Na primeira damos uso ao Auto-Battle com 3 Pokémon, tendo que derrotar 30 Pokémon de determinado tipo durante 10 minutos e, depois, temos uma boss battle com o líder daquele acampamento. Embora as batalhas com os líderes sejam muito interessantes porque cada um tem uma versão mecha do Revavroom, com maior HP e atributos, a 1ª parte torna-se repetitiva muito depressa: ao contrário dos combates, a Auto-Battle vence-se utilizando um Pokémon do tipo resistente ao inimigo, sem ser necessário qualquer tipo de estratégia ou agência do jogador.
A evolução dos Pokémon Totem e Noble, de Sun & Moon e Arceus, surge na forma dos Pokémon Titan espalhados pelo mapa. Na storyline de Arven, precisamos de vencê-los, autênticos Kaiju gigantes, para termos acesso a várias instâncias de Herba Mystica (HM, abreviado para os fãs de longa data) que vão servindo como upgrades de locomoção do nosso Pokémon lendário titular, Koraidon ou Miraidon.
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Guardei para o fim este elemento porque é o único resquício positivo do excelente exercício de narrativa espacial desenvolvida em Pokémon Legends: Arceus. Pela primeira vez, o Pokémon lendário titular é-nos atribuído logo no início do jogo contudo, sem podermos utilizá-lo em combate. Serve como uma versão diferente do Cyclizar, que podemos utilizar como mota para navegar o mapa.
Ao longo do jogo e dos confrontos com os Pokémon Titan, vamos desbloqueando mais habilidades, curando-o a pouco e pouco. Como é o único Pokémon constante na nossa aventura, acabamos por criar maior ligação emocional com ele e com o seu crescimento sem precisarmos de batalhar.
Considerações Finais
Esta relação e caminho dá-nos frutos muito positivos no final do jogo e, ao mesmo tempo, traz com ele um sentimento de tristeza por ser também a única instância em que isto ocorre. Apesar da toada bastante crítica, não deixo de ser um fã Pokémon: e para fãs, o jogo funciona e traz elementos bastante positivos e há muito pedidos, como a simplificação do leque de golpes de combate. Não deixa de ser Pokémon, bem lá no fundo – se gostámos de todos, também vamos gostar deste.
Mas… é impossível não sentir um profundo desapontamento porque Pokémon Scarlet, no bolo completo, sabe a preguiça e a falta de brio. Em cima da ausência de conteúdo e da UI completamente despida, temos provavelmente o leque de designs novos mais desinspirado da saga até agora, com evoluções que não apresentam qualquer mudança visual e versões regionais que são autênticos pallette swap.
Destacam-se alguns Pokémon, como Armarouge, Koraidon, Arboliva, os starters (A linha do Quaxly tornou-se a minha linha de água favorita da saga) e os Pokémon Paradoxos, versões diferentes de Pokémon normais que por uma questão de spoilers deixo à vossa descoberta.
Até a música, que por norma é a constante qualitativa da saga, pela primeira vez mostra um resultado… preguiçoso. Se por um lado é de elogiar a introdução de temas progressivos ao longo do jogo, sem cortes entre o tema do mapa e o tema de combate, apropriados a cada momento de jogabilidade, por outro temos algumas repetições de jogos anteriores que não soam a leit motifs ou callbacks, mas a… preguiça.
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O tema de ginásio, embora se tenha tornado um dos meus favoritos de toda a saga pelo crescendo cheio de electro jazz, acrescentando uma layer de divesão aos combates, acaba por ir beber à fonte do tema de Sword & Shield com coros praticamente iguais, quando por norma segue-se um caminho diferente em cada iteração.
Como disse no início, Pokémon Scarlet é um paradoxo: consegue, nos pontos de interação com a narrativa, ser o mais aliciante e divertido Pokémon até à data e, ao mesmo tempo, em todo o processo que nos leva do ponto A ao ponto B, ser o mais desinspirado e aborrecido de sempre. Se a balança estivesse mais equilibrada, provavelmente seria mais benevolente. Mas 26 anos de Pokémon levam-me, também, a perceber quando é demais. E neste caso, não podemos continuar a ser coniventes. Temos que exigir melhor.