Dependentes de orçamentos cada vez mais dispendiosos, as grandes produções tendem a deixar de lado as ideias mais arrojadas e experimentais, apostando em fórmulas de apelo universal e que já tenham provas dadas a nível de rentabilização. Contudo, com o advento dos jogos independentes, essa lacuna criativa tem sido colmatada através de certas obras que tiram total partido da interactividade que apenas um videojogo consegue proporcionar, infundindo nas mecânicas alguma expressão artística de cariz muitas vezes pessoal.
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É essa a proposta que Lost Words: Beyond the Page apresentou no ano transato e que passou ao lado de muito boa gente, talvez por apenas ter sido lançado no Stadia. Com a recente chegada a consolas e PC, o título produzido pela Sketchbook Games e com a chancela editorial da Modus Games merece toda a atenção por parte de quem procura uma experiência especial em que as mecânicas e a história formam uma relação simbiótica pouco habitual.
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Um diário que explode em palavras e emoções
A história inicia-se quando uma menina, chamada Izzy, recebe da sua avó um diário. O seu sonho é tornar-se escritora e não leva muito tempo até engendrar a sua primeira história, optando por criar um universo de fantasia. Nas páginas do diário, são as palavras que detêm todo o poder. Controlamos Izzy que se desloca numa perspectiva bidimensional por cima das frases e palavras e com o outro analógico manipulamos um pequeno cursor que interage com o cenário. Ao pegarmos em determinadas palavras com o cursor, a função escrita desempenha uma ação, como cortar relva ou soprar velas.
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A sua avó acaba por adoecer e o diário torna-se, para além do manuscrito da narrativa que toma lugar no reino de Estoria, uma ferramenta introspetiva, um local onde a sua dor é partilhada. O jogador escolhe o nome e traços de carácter da protagonista e a criação literária de Izzy materializa-se. Robyn (nome que escolhemos) é uma aprendiz da guardiã de uma aldeia em Estoria e a sua vida é virada do avesso quando um maléfico dragão ataca impiedosamente a sua aldeia. A rapariga parte então numa odisseia de descoberta por este mundo fantástico visionado por Izzy e, em simultâneo, a história da autora lida com os sentimentos associados ao que a potencial perda da avó representa.
Mecânicas simples, palavras fortes
A jogabilidade é definida pela simplicidade das suas mecânicas. As plataformas e puzzles foram construídas não para desafiar o jogador nem para elevar o género no campo dos controlos mas sim para suportar uma história comovente. O jogador tem à disposição algumas palavras que interagem de diferentes formas. As palavras fazem exatamente aquilo que dizem e desta forma podem elevar plataformas, destruir obstáculos ou restaurar ruínas. Existe alguma exploração, em que podem encontrar pirilampos, se assim o desejarem. As mecânicas são tão simples que Lost Words mais se assemelha a uma experiência interativa, a um conto infantil que se enquadra no ecrã a partir de leves direções executadas no comando ou rato e teclado.
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O maior triunfo deste maravilhoso título é a maneira como pega em dois arcos narrativos e os une através da mesma temática de perda, da falta de norte que as duas personagens experienciam. A vida da escritora influencia o rumo da sua obra mas o contrário também acontece e é ainda mais importante na introspeção e na tão necessária organização emocional que acaba por decorrer. Os dois arcos narrativos brilham de diferentes maneiras. Todos nos podemos relacionar com a história entre avó e neta, independentemente das diferentes relações familiares que tenhamos.
A construção familiar está tão bem escrita que há momentos que apresentam poderosos socos emocionais capazes de rivalizar com alguns dos momentos mais comoventes que a Pixar já produziu. A perspectiva da história projectada no diário ficou fantástica, sendo este o recipiente de tudo o que vai na alma de Izzy. Por outro lado, a jornada da personagem do conto apresenta os mesmos temas numa composição mais épica, mais abstracta, mais simbólica mas igualmente marcante.
Tal como as duas narrativas se complementam a partir de prismas factuais distintos, existem dois estilos visuais que funcionam em perfeita harmonia em Lost Words: Beyond The Page. O mais interessante é sem dúvida o que salta das páginas do diário, ao apresentar tintas aguarela que difundem o estado interior da pequena escritora. É como se um conto encantado ganhasse vida através de cores saturadas.
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Na aventura literária, as localizações refletem um mundo abandonado, à espera de um novo ciclo que não tarda a surgir. De traço simples e por vezes colorido, apresentam um palco enigmático à espera de ser atravessado. A sonoplastia apoia a aventura e enfatiza os momentos mais emocionantes, existindo a possibilidade de ‘cortarem cebolas’ que nem uma Maria Madalena.
Considerações Finais
Lost Words: Beyond The Page assume-se como uma experiência ímpar, onde criadora e criação se dirigem na mesma viagem de auto descoberta, perda, luto, e reinvenção. A obra visionada por Rhianna Pratchett é um exemplo daquilo que apenas um videojogo consegue atingir, ao não só termos alguma agência em partes da história mas também por nos sentirmos tão envolvidos por cada palavra que movemos. Capaz de encantar miúdos e comover graúdos, Lost Words é mais um passo sólido na exploração de novas ideias, novas técnicas de exposição de histórias cativantes.
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A Sketchbook Games iniciou o seu currículo da melhor maneira e tendo em conta o nome do estúdio, será expectável um futuro marcado pelo aprofundamento dos conceitos aqui apresentados. Seja uma sequela ou algo totalmente novo, há que acompanhar o seu percurso de forma atenta mas por enquanto, encontrarão um título no qual podem mergulhar com segurança caso procurem uma bela história apresentada de uma forma pouco convencional.
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N.R.: A análise a Lost Words: Beyond the Page foi realizada numa Playstation 5 , através de uma cópia do jogo comprada pelo autor do texto.