Num mar de títulos AAA com visões e pressupostos de design cada vez mais uniformes e semelhantes entre si, torna-se refrescante encontrar uma proposta independente inspirada no passado, mas com os olhos postos no futuro.
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Death’s Door, da Acid Nerve, não merece rodeios: estamos perante um dos melhores videojogos do ano. A aventura tenebrosa, mas colorida do nosso pequeno corvo, caçador de almas, merece indiscutivelmente o espaço da vossa Xbox One & Series ou do vosso PC. Agora que estamos no mesmo pé de igualdade, vou explicar-vos porquê.
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A burocracia da Morte
O jogo começa com a chegada do nosso corvo a uma estação de comboios, estagnada e cinza. A partir do ponto de vista isométrico, podemos explorar os nossos controlos – conseguimos movimentar-nos em todas as direções, sob um eixo de 360º, bem como efectuar uma cambalhota como manobra evasiva e atacar com a nossa espada.
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E inicialmente, é a isto que temos direito. A nossa profissão é a de caçador de almas, responsável por equilibrar o fluxo da vida e da morte. É num escritório poeirento, aborrecido, repleto de normas e burocracia que nos aventuramos pela primeira porta, que serve como portal para o mundo dos Vivos.
Em menos de 2 minutos, somos colocados diretamente no jogo, com todo o contexto necessário para a nossa aventura, sem estarmos inundados de informação extra, supérflua ou exagerada. O primeiro mapa serve como tutorial para nos habituarmos aos controlos e ao combate e lança-nos nos acontecimentos que nos colocam na nossa aventura.
Acontece que existe uma Alma associada, contratualmente, a cada um dos Caçadores de Alma. Se a mesma foge ou é roubada, como nos acontece, somos obrigados a reavê-la por todos os meios possíveis, sob pena de perdermos a nossa imortalidade e trabalho.
De uma premissa interessante nasce uma narrativa surpreendentemente profunda, contada predominantemente através de interações: com as personagens que compõem o mundo, com os objectos e colecionáveis que vamos descobrindo e, muitas das vezes, com a própria dicotomia artística entre os vários níveis.
Um videojogo repleto de alma(s)
O elenco que dá luz a Death’s Door é tão criativo quanto bem escrito. Durante as 12 a 15 horas de jogo sentirão curiosidade, tal é a qualidade da escrita, em conversar com os vossos colegas de escritório à medida que o jogo desbloqueia mais portais, ou em conhecer as tragédias e problemas que assolam as personagens secundárias em cada nível.
Estes níveis, aliás, são dominados pela nossa missão principal: recuperar três almas Gigantes, pertencentes a seres vivos que se recusaram, basicamente, a morrer, tornando-os cada vez menos humanos e, por conseguinte, mais desligados da sua própria humanidade. Por um lado, é tão tocante como hilariante conhecer a Bruxa das Urnas, inicialmente uma avó a mãos com, mais do que a sua finitude, a dos que a rodeiam, mas por outro, é também altamente aliciante ir desenrolando o sub enredo que cada uma destas almas Gigantes nos dá.
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São pequenas peças que vão preenchendo os espaços em vazio do contexto global da nossa missão, da forma como estas personagens entraram nos seus conflitos e do que, de facto, causou o estado atual do mundo de Death’s Door. Os itens que vamos descobrindo e algumas das personagens secundárias ajudam-nos, também, a perceber um pouco mais do mundo, permitindo que a decisão sobre a informação esteja toda ligada à jogabilidade e não escondida num menu ou glossário, tornando-a mais acessível e, em simultâneo, interessante.
Os pequenos detalhes em Death’s Door fazem também parte da narrativa e são personagens pequenas, mas importantes para os que os procurarem. Um dos momentos mais interessantes acontece quando vencemos um dos três bosses e não avançamos imediatamente. Na verdade, somos transportados para um momento solene, de homenagem à vida de cada um deles, celebrando a sua Vida com todos os seus defeitos e virtudes e respeitando a morte não como uma finalidade, mas como mais um passo no caminho de uma alma.
A arte tem também uma palavra a dizer nesta narrativa, pela forma como estabelece a dicotomia entre o mundo burocrático e opressivo dos corvos, onde curiosamente, não existe… finalidade, apenas imortalidade, e os mundos repletos de perigos que podem levar a nossa vida, mas também preenchidos com cor, surpresas, diferentes sensações e caminhos.
Há uma das personagens que nos coloca em confronto com a sua premissa principal: “Para quê viver para sempre, se é para se viver como um escravo?”. É em busca desta resposta – que podem ou não encontrar, dependendo da forma como decidirem descortinar o final de Death’s Door – que passamos o nosso tempo. São estes pequenos detalhes que constroem uma narrativa tão fortemente coesa, do início ao fim do jogo.
Porém, não há história boa o suficiente que sobreviva a má jogabilidade. A boa notícia? Death’s Door é extremamente sólido.
Sobreviver não é fácil
Começamos com uma espada e uma de quatro habilidades mágicas, um arco e flecha. A partir daqui, exploramos um mapa-mundo completamente interligado, onde a partir do ponto de partida – o Lost Cemetery – vamos acedendo aos restantes níveis. Esta exploração, de início, é linear, fruto da falta de instrumentos com que desbravar mais dos locais, mas Death’s Door inspira-se bastante na fonte dos RPGs de ação dos anos 90, como A Link to the Past ou Beyond Oasis, para construir uma teia extremamente robusta de risco e recompensa.
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Significa isto que uma sessão de jogo mais linear, sem grandes desvios, leva-nos até aos créditos, relegando o crescente desafio do jogo na evolução das nossas qualidades mecânicas e conjugação com as restantes habilidades que encontramos na história. Porém, se decidirmos explorar um pouco mais, somos presenteados com desafios extra mais exigentes, mas cujas recompensas nos deixam melhores equipados para enfrentar o resto do jogo.
Ao arco e flecha, juntamos uma bola de fogo, capaz de trespassar fileiras de inimigos e acender fogueiras, uma bomba capaz de detonar paredes e grupos de vilões e um gancho, que nos permite não só que nos aproximemos a toda a velocidade de um rival, mas também de alcançar plataformas previamente inacessíveis.
O design global de cada nível pressupõe que os revisitamos, à medida que desbloqueamos cada habilidade. Não sendo um jogo linear na forma como apresenta o mundo – não seguimos uma sequência fechada de níveis, da esquerda para a direita -, vamos desbloqueando portais que nos levam ao mundo dos Corvos e que nos permitem regressar a pequenos checkpoints em cada submundo, a partir dos quais podemos usar novas habilidades para recuperar itens perdidos, pedaços de Alma ou até cristais que nos permitem melhorar, quando encontradas 4 peças, a nossa vida e a nossa magia.
Estes pedaços de Alma servem de moeda de troca para, no mundo dos Corvos, podermos evoluir a nossa personagem, desde a velocidade do ataque até ao dano, rapidez de movimentos e da magia. Todos estes elementos são cruciais para nos tornarmos cada vez mais habilidosos contra uma surpreendente variedade de inimigos. Death’s Door, em termos da sua progressão, rejeita de forma refrescante a popularidade dos cenários desenhados procedualmente e esse prazer revela-se nos caminhos e situações de combate intrincadas que o jogo nos oferece.
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Se ao início os inimigos são algo passivos e permitem-nos ganhar intimidade com os controlos e as habilidades, vão progressivamente tornando-se mais móveis, mais imprevisíveis e em maior quantidade, obrigando-nos a, faseadamente, irmos aumentando a nossa capacidade de leitura de movimentos mas também o nosso conhecimento de cada arena de combate, para utilizarmos as diversas ferramentas a nosso favor.
Para além disso, o desbloqueio da possibilidade de adquirimos as habilidades está fechado em salas com ondas de inimigos que colocam à prova os conhecimentos que fomos adquirindo ao longo do nível, colocando-nos depois numa onda de combates adicional para conseguirmos efectivamente acesso à nova habilidade, com misturas de inimigos inesperadas e que nos colocam em sentido.
Em momento algum do jogo sentimos que a dificuldade subiu de forma demasiado exagerada, ou que era um passeio sem qualquer tipo de desafio. O design dos cenários de cada momento de combate está desenhado ao milímetro e permite-nos evoluir com a nossa personagem, com as diversas armas que apanhamos – à espada inicial e um chapéu-de-chuva, juntamos um par de facas mais ágeis e rápidas, um martelo capaz de danificar inimigos em cadeia e uma espada gigante, muito reminiscente à Master Sword, de Link – sem que nos apercebamos. Apenas quando regressamos a um mundo anterior e o conseguimos ultrapassar com menor dificuldade é que sentimos a nossa evolução, de uma forma bastante orgânica e prazerosa.
A vida é um puzzle.
Death’s Door não vive apenas de combate, no entanto. São inúmeros os puzzles que vão surgindo no nosso caminho, desde fugas de lasers assassinos em plataformas que caem até à combinação de várias das habilidades que desbloqueamos para termos acesso a novos caminhos, chaves ou itens. Não são puzzles exigentes, pedindo mais da nossa capacidade motora do que do raciocínio.
A forma como cada um deles liga às habilidades que desbloqueamos e, gradualmente, pede que utilizemos mais que uma para a solução de cada um, mantêm-nos frescos e dinâmicos, nunca se tornando numa paragem repetitiva ou monótona do flow de progressão de Death’s Door. Ao lado dos puzzles principais, estão os mais elusivos, que nos escondem o caminho para os coleccionáveis, para as Almas grandes ou até para upgrades para as nossas habilidades.
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Neste ponto, reside provavelmente a única nota menos saborosa de Death’s Door: a total ausência de um mapa. Significa isto que a vossa memória fotográfica será posta à prova, principalmente se quiserem revisitar todos os mundos e descobrir todos os segredos. Para além disso, o loop de combate não utiliza itens – ou seja, se recebermos dano ou utilizarmos magia, não temos curativos para o recuperar.
A forma que o jogo nos oferece para regressarmos aos níveis iniciais é através de inúmeras jarras, no caso da vida, onde podemos plantar diversas sementes que encontramos ao longo do jogo e que nos permitem curar a nossa personagem uma vez, podendo apenas ser utilizadas de novo se morrermos ou regressarmos ao mundo dos Corvos. Já a magia recupera com cada golpe da nossa arma num inimigo ou objecto no cenário.
Se neste caso somos desafiados a diversificar a nossa estratégia de combate em função do cenário tornando-o sempre fresco, no caso da vida, torna a nossa… “vida” mais complicada porque sem uma orientação, só a nossa memória nos consegue auxiliar em busca dos locais onde podemos ou não recuperar.
Apesar de tudo, conseguimos perdoar, porque este elemento faz sentido dentro da narrativa e setting do jogo: bolas, somos um corvo a explorar mundos por onde não andou, é natural que não tenhamos um mapa. Contudo, sentimos que, se alguns dos segredos estão genuinamente bem escondidos e obrigam-nos a usar o engenho e criatividade para os encontrar, a maior parte vê a sua dificuldade aumentar pela nossa desorientação espacial e não tanto pelo seu cunho criativo.
Considerações Finais
Death’s Door é um deleite visual, sonoro e mecânico. Desde a forma como os níveis estão artesanalmente ligados, permitindo-nos desbloquear pequenos atalhos que nos ajudam a percorrê-los mais depressa, à forma como cada inimigo, personagem secundária ou boss se movimentam e respiram personalidade a cada animação e, ainda, à nossa personagem, que como corvo inocente no meio de um enredo maior que a sua própria vida, mantém um aspecto quase… realista.
Os bosses são deliciosos e colocam-nos à prova de forma justa mas desafiante, apresentando-nos o que de melhor cada um dos mundos que representam têm. Mais: dois dos bosses apresentam uma carga dramática e emocional inesperada e que ajudam, ainda mais, a tornar a viagem inesquecível.
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A música, composta por David Fenn, é bastante plástica e tanto nos conduz em secções de adrenalina como nos traz paz e quietude, sempre dentro do mesmo leitmotif que pontua toda a banda-sonora e o jogo, em si.
E se porventura sentirem que este título já não é carnudo o suficiente, ainda nos oferece uma secção pós-créditos repleta de novos puzzles, desafios, e aquilo a que o jogo chama de Verdadeiro Final.
De facto, Death’s Door é um título que, por um lado, bebe da fonte dos grandes títulos do passado, construindo e aplicando a sua própria criatividade. A ser algo, é um título de artesãos: cada pixel deste jogo respira intenção. Não há um caminho, um inimigo, um item ao acaso ou mal colocado: tudo faz sentido.
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E a maior das ironias sobre um jogo que, maioritariamente, versa sobre a morte: está cheio de vida. Talvez seja essa a mensagem que nos queira deixar. A nossa, no entanto, é mais simples e menos filosófica: se têm uma Xbox One ou Series X | S, precisam de jogar Death’s Door.
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N.R.: A análise a Death’s Door foi realizada numa Xbox Series X com acesso a uma cópia do jogo gentilmente disponibilizada pela Devolver Digital