Sea of Roses

Sea of Roses – Análise

O que é o amor? E uma relação saudável? Em que estão assentes os nossos valores? Será que somos verdadeiramente livres? São estas, entre outras, as questões que Sea of Roses, o primeiro título do estúdio português Crescent Tea, deixa no ar durante as 3 ou 4 horas de gameplay relaxante.

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O jogo, desenvolvido por Andreia Santos Batista, Ariana Parrilha e André Fidalgo Silva, conquistou-me com uma premissa simples: um jogo com foco na história, com artwork fantástica, aliada a mistério e uma mecânica point & click. A expectativa estava elevada e, mesmo assim, Sea of Roses acabou por ser muito mais do que estava à espera, em diversos aspetos.

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Embora tenha entrado às cegas para esta análise, como gosto de fazer, Sea of Roses é claro no seu objectivo. O jogo é segundo classificado do Life.Love. Game Design Challenge, desafio internacional do Jennifer Ann’s Group que premeia jogos que abordem temas como violência no namoro, relações saudáveis, consentimento, entre outros.

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Um tema tão claro, embora incrivelmente importante, corre por vezes o risco de produzir um jogo sem grande profundidade narrativa ou jogabilidade interessante, o que pode comprometer a mensagem que tenta passar. No entanto, Sea of Roses ultrapassa este obstáculo sem qualquer dificuldade, e chega À loja Steam como uma história interactiva que agarra o jogador do início ao fim.

Atenção: spoilers ligeiros à frente.

De Alma e coração

Qual Alice atrás do coelho, conhecemos a nossa protagonista, Marion, quando esta aterra numa versão paralela do seu próprio sótão. Ao explorar a casa, rapidamente percebemos que não estamos sozinhos. É aí que conhecemos Alma, uma mulher forte, confiante, de espírito livre e de crenças firmes.

Tudo na personagem contrasta com a conservadora e tímida Marion, que, embora tenha perdido a memória, freneticamente procura forma de regressar ao seu noivo, Anders. Gentil e solidária, mas firme: Alma é a primeira a confrontar Marion com algumas das realidades da sua vida e da relação com Anders, que aos poucos vão voltando à sua memória.

Fruto de uma sociedade estrita e patriarcal, Anders é rapidamente identificado pelo jogador como controlador e abusivo, deixando em aberto quais serão as consequências para Marion quando esta conseguir regressar a casa. Já para Marion, esta realidade não é tão clara.  É esta escolha que o jogador terá que navegar ao longo da história, conforme as decisões que for tomando em Seallea, a aldeia costeira repleta de personagens e criaturas simpáticas como Dotter, parte cão, parte lontra (e sim, é possível dar-lhe festinhas!).

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Com esta mecânica simples, Sea of Roses rapidamente aborda dois temas pouco comuns, não só em jogos, mas em outras formas de entretenimento – a misoginia interiorizada e a normalização do abuso.

A sociedade de Marion e Anders incentiva o que, para nós, são os valores “tradicionais” da família. Marion não reconhece o abuso a que é sujeita, encoberto sob a fachada de preocupação de Anders em providenciar-lhe uma boa vida. O problema surge quando ambos são obrigados a confrontar qual é a definição de “boa vida” para cada um. Marion cresceu a acreditar nestes valores, sendo tanto vítima como defensora dos mesmos. Não é apenas a sociedade que normaliza esta relação, mas ela própria.

Sea of Roses

Lady Marion

É assim que somos apresentados a Marion, que no início de Sea of Roses é o epítome de uma protagonista desagradável. Ingénua, conservadora e a trabalhar contra si mesma, é fácil que um jogador mais consciente de questões sociais se deixe levar na frustração das primeiras conversas em que Marion encarecidamente defende o noivo abusivo e o estilo de vida tradicional a que está habituada. 

Afinal, Marion está apaixonada por Anders. E Anders talvez também esteja apaixonado por Marion. Marion acredita que o papel de uma mulher na sociedade é enquanto esposa e mãe, exclusivamente. Anders acredita que o papel do homem é providenciar uma boa vida à sua família e que uma mulher que queira sair do papel tradicional é indicativo de uma falha por parte do seu marido.

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No papel, Marion e Anders são o match perfeito, aspecto que não é questionado por ninguém na sua sociedade, muito menos por eles próprios.

Mas não é com frustração que Marion é recebida em Seallea. Todas as personagens se mostram preocupadas mas empáticas, educando em vez de censurar e deixando claro que a decisão é apenas dela. Este empoderamento da personagem tem consequências óbvias e imediatas, e vemos Marion a dar passos lentos mas firmes na sua jornada para uma maior auto-confiança. Independentemente do final com que acabamos, fazemos a jornada de Marion com ela, e é impossível ficar indiferente à sua história.

Sea of Roses

Muito click, pouco point

A jogabilidade de Sea of Roses é simples. Tão simples, na verdade, que dei por mim a jogar a maior parte do tempo com apenas uma mão, aproveitando os snacks que acompanhavam a sessão de jogo. 

Durante toda a história controlamos sempre Marion, que anda dolorosamente devagar (mesmo com o boost dado pelo botão shift), para a frente ou para trás no mapa (linear, na maior parte do tempo). Controlamos Marion com as teclas A e D ou setas direccionais, e interagimos com objetos através da barra de espaços ou botão enter. Nem é preciso tocar no rato.

A certa altura do jogo, Marion encontra um diário que podemos aceder através da tecla Q. É também aqui que podemos fazer save, uma vez que o jogo não grava automaticamente. Os objetos com os quais podemos interagir são poucos e estão assinalados com um balão de fala. Enquanto fã de jogos point & click, encontrei aqui o meu primeiro ponto negativo, uma vez que senti que o jogo não me permitiu explorar o mundo como queria.

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A excepção a este ponto chega no capítulo 3 quando encontramos uma “treasure hunt” que permite um pouco mais de exploração e o jogo larga ligeiramente a mão do jogador. Dito isto, apesar de ter sido um ponto menos positivo para mim, esta mecânica é perfeita para jogadores casuais ou com pouca experiência em point & clicks.

Embora seja um jogo curto, existem dois modos de jogo, original e extended, sendo que o segundo oferece mais alguns elementos de história e interacção com personagens. Sendo um jogo tão curto, recomendo vivamente a opção extended.

O jogo foi pensado para ser repetido pelo menos 3 vezes, de forma a podermos ver todos os finais possíveis para a história de Marion. Após o primeiro playthrough, a personagem anda ligeiramente mais depressa (suspeito que ainda demasiado devagar para muitos jogadores), e aparecem algumas novas opções de diálogo. Infelizmente, para quem gosta de explorar, a história continua a ser bastante linear.

Entre Marido e Mulher

Durante o decorrer da história, não é apenas Marion que é confrontada com aquilo em que acredita. Nós, os jogadores, somos obrigados a considerar as nossas crenças e valores e a re-avaliar relações pessoais actuais, passadas, ou futuras. Para algumas pessoas, o jogo pode mesmo ser ligeiramente precipitador de trauma passado.

Nenhuma das personagens pressiona Marion numa ou noutra direcção, mas todas tentam mostrar-lhe, através das suas histórias pessoais, quais poderão ser as consequências do retorno à relação com o noivo. Os habitantes de Seallea ensinam Marion a estar atenta aos sinais de uma relação tóxica, ao mesmo tempo que o jogo faz o mesmo por nós.

Considerações finais

Penso que seja claro a esta altura que tive uma experiência muito positiva com Sea of Roses. Apesar do tema triste e, por vezes, desanimador, o jogo faz por nos relembrar a cada passo que, por mais que pensemos estar sozinhos, nunca o estamos.

A narrativa de Sea of Roses é fantástica e os diálogos estão muito bem escritos. Ainda assim, não pude deixar de ter pena que, por vezes, a mensagem do jogo fosse tão directa, não porque considere que impacte o storytelling, mas infelizmente, a realidade nunca é assim tão simples. 

Marion pode não identificar Anders imediatamente como abusivo mas todas as outras personagens (e jogador) fazem-no rapidamente. Na realidade, uma relação como a de Anders e Marion tem tudo para aparentar ser perfeita do lado de fora, sendo que por vezes podem passar anos até surgirem os primeiros sinais exteriores de toxicidade. O jogo toca nesse ponto ligeiramente, com a aceitação total de Anders pela sociedade de onde vêm contrastando com a repúdia imediata por Alma, mas acaba por não o explorar suficientemente ao longo da história. 

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Apesar do jogo focar a decisão de Marion e demonstrar a experiência de abuso da perspectiva da vítima, penso que poderia ainda existir espaço para explorar a história de Anders, que, apesar de claramente o vilão e imperdoavelmente abusivo, é empoderado e moldado pelo sistema patriarcal onde ambos vivem. 

Enquanto história, Sea of Roses é irrepreensível. Cumpre o objetivo a que se propõe ao mesmo tempo que cria uma experiência de jogabilidade agradável e de acesso fácil. Enquanto jogo, no entanto, oferece pouca exploração e desafio, aspectos que poderiam ter sido incorporados sem comprometer a história a que se propunham contar.

Sea of Roses já está disponível no Steam de forma completamente gratuita, pelo que recomendo que todos os jogadores de PC que tenham algumas horas livres o experimentem, embora deva deixar aqui um trigger warning a quem possa ser sensível ao tema de relações abusivas. Sea of Roses é mais que um jogo, é uma experiência de reflexão e um momento de aprendizagem, e penso que a história de Marion não me vai deixar tão cedo.


+ Narrativa fantátisca
+ Música muito bem escolhida
+ Estilo artístico interessante e com carácter

– Pouca possibilidade de exploração
– Alguns temas são abordados, mas não aprofundados
– Pouco desafiante
N.R.: A análise a Sea of Roses foi realizada num Windows PC com acesso antecipado ao jogo através de um código gentilmente disponibilizado pelo Crescent Tea Studios