Há dois grandes sistemas operativos móveis: o iOS da Apple e o Android da Google. Juntos representam atualmente quase 100% das vendas de smartphones a nível global, o que deixa um grande poder concentrado nas mãos de apenas duas empresas. A concentração é ainda maior para a Google, pois sozinha consegue ter o seu sistema operativo em mais de 85% dos dispositivos móveis vendidos em todo o mundo.
Ter tamanha influência na área dos sistemas operativos móveis permite a estas empresas rentabilizarem muitos dos seus outros serviços digitais, como o Apple Pay no caso da Apple ou o YouTube no caso da Google. São serviços que conseguem manter uma escala de utilização considerável justamente por virem pré-instalados em centenas de milhões de dispositivos móveis.
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Um dos serviços que vem integrado de origem em cada um dos sistemas operativos é a respetiva loja de aplicações. As app stores são negócios muito lucrativos, pois garantem à Apple e à Google uma percentagem de todas as transações que ali são feitas. Para ter uma ideia, a App Store da Apple já foi responsável por gerar 70 mil milhões de dólares em receitas para os programadores, tendo gerado para a marca da maçã uns respeitosos 30 mil milhões de dólares desde 2008.
Acontece que o mercado das app stores está muito bloqueado. No iOS não são permitidas lojas além da Apple App Store – não pelo menos sem aplicar um jailbreak – e no sistema operativo Android apesar de ser possível instalar lojas alternativas ao Google Play, a verdade é que essa instalação é ‘marginalizada’, não sendo possível instalar diretamente da loja oficial do Android, a única forma que a Google aconselha aos seus utilizadores para instalarem aplicações.
Sobretudo o protecionismo da Google já gerou algumas quezílias com empresas que têm lojas de aplicações para Android e que são bastante populares – caso da gigante Amazon e da portuguesa Aptoide.
Não é segredo que a Aptoide não é fã deste posicionamento da Google. A tecnológica fundada por Paulo Trezentos e Álvaro Pinto já apresentou inclusive uma queixa junto da Comissão Europeia por considerar que a Google exerce um conjunto de práticas que não são saudáveis e que violam o enquadramento legal europeu em matéria da concorrência. O caso ainda está a ser investigado.
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Apesar do ambiente claramente hostil no qual opera, a Aptoide e a sua loja de aplicações para Android – tem o mesmo nome da empresa – não deixaram de se tornar num caso de sucesso internacional. Em meados de setembro a empresa contabilizava 200 milhões de utilizadores, ultrapassou a meta de quatro mil milhões de apps descarregadas pelos utilizadores e já tinha perto de mil milhões de aplicações disponíveis na sua loja.
A parte mais interessante de tudo isto? A guerra da empresa com o duopólio estabelecido nas lojas de aplicações ainda agora está a começar.
O blockchain adaptado às lojas de aplicações
No dia 11 de outubro a Aptoide anunciava oficialmente o seu novo projeto: AppCoins, um protocolo baseado em blockchain e que pretende fundir o conceito de economia circular e criptomoedas nas lojas de aplicações. Segundo a proposta da empresa, este projeto pode ajudar a melhorar três grandes áreas associadas às app stores – publicidade, compras dentro de aplicações e aprovação de aplicações.
Na perspetiva da Aptoide, atualmente os processos de publicidade para os programadores são ineficientes, as compras dentro das aplicações são caras e pouco acessíveis, e a empresa considera ainda que existe falta de transparência e confiança nos processos de aprovação das apps. A grande questão é como pode o AppCoins melhorar estas áreas específicas – o segredo está no conceito de blockchain e das criptomoedas.
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O AppCoins é um protocolo que está a ser desenvolvido de forma aberta, querendo isto dizer que podem ser feitos contributos para a melhoria do protocolo por programadores que não nem sequer estão diretamente ligados à Aptoide. A empresa portuguesa escolheu o standard ERC20 da rede de blockchain Ethereum para desenvolver este projeto.
Isto significa que o projeto tem um caráter descentralizado e que a imutabilidade da linha de registos proporcionada pela tecnologia de blockchain pode ser aproveitada para acelerar processos sem comprometer os níveis de segurança e transparência.
“O Ethereum tem características que se adequam mais à criação de uma nova criptomoeda, como por exemplo os smart contracts, que possibilitam a execução de transações validadas e que nos permitirão eliminar intermediários e melhorar significativamente o processo de aprovação de apps através da informação partilhada entre apps stores”, disse fonte oficial da Aptoide em resposta por email ao FUTURE BEHIND, relativamente à escolha da rede de blockchain Ethereum.
Isto significa que o AppCoins vai ter uma criptomoeda associada – chama-se AppCoins e vai ser identificada nos exchanges como APPC -, criptomoeda esta que acaba por ser parte do segredo para o potencial que o projeto pode vir a desbloquear. Para perceber melhor como funciona o AppCoins em conceito, vamos fazer uma pequena simulação.
O Carlos é programador e acabou de lançar uma aplicação para o sistema operativo Android. Como o Carlos é pouco conhecido a nível mundial e quer que a sua aplicação ganhe escala internacional, o Carlos decide investir em publicidade para que a sua aplicação seja mostrada a utilizadores do sistema operativo Android quando estão a usar outras aplicações.
O Carlos vai pagar sempre pela exposição que vai conseguir – a sua aplicação foi mostrada a mil pessoas – e não pela conversão no número de instalações – só três pessoas instalaram a app, por exemplo. Isto faz com que muitos dos investimentos publicitários feitos pelos programadores e pelas empresas possam ter resultados de conversão abaixo do esperado.
O que a Aptoide propõe com o AppCoins é que o utilizador seja diretamente recompensado pela publicidade que está a ver ou pela própria experimentação da app. Ou seja, o Carlos em vez de investir para ter o maior alcance possível, vai estar a pagar ao utilizador para que este conheça a sua aplicação. Quanto vai investir, quanto tempo é necessário o utilizador permanecer na aplicação e quanto vai ganhar o utilizador no final são todos critérios definidos pelo Carlos, algo ao qual a Aptoide chama de bid. A empresa vai depois fazer uma correspondência entre bids que estejam disponíveis e utilizadores que estejam à procura de bids para ganhar AppCoins.
Como o utilizador é pago na criptomoeda Appcoins, isto significa que ao final de um dia pode ter algumas Appcoins na sua carteira para gastar em compras dentro das aplicações. Isto faz com que o dinheiro poupado pelos utilizadores volte depois para as mãos dos programadores.
Forma-se aqui o conceito de economia circular, pois o objetivo é criar incentivos para os programadores, que por sua vez criam incentivos para os utilizadores, que por sua vez voltam a criar incentivos para os programadores. É um circuito que em termos de negócio e de experiência de utilização tem um grande potencial.
No entanto o circuito não é completamente fechado. Os programadores vão poder converter as suas AppCoins em dinheiro fiduciário – dólares e euros por exemplo -, ao passo que os utilizadores nunca poderão fazer um levantamento das suas AppCoins. Mesmo que o utilizador tenha mil AppCoins na sua carteira, esse dinheiro só pode ser usado dentro das app stores compatíveis.
Este é outro ponto a destacar. O protocolo que a Aptoide está a desenvolver pode ser integrado em qualquer loja de aplicações de qualquer sistema operativo – sim, também pode ser integrado na App Store da Apple e no Google Play, ainda que este cenário pareça pouco provável.
Numa primeira fase será a própria loja de aplicações Aptoide a integrar o conceito do AppCoins. Mas no futuro, se mais lojas integrarem a tecnologia da empresa portuguesa, então as AppCoins angariadas pelos utilizadores poderão ser gastas tanto na Aptoide como nas outras lojas que suportam o sistema. Em última instância, as AppCoins são uma criptomoeda desenhada e pensada especificamente como meio de transação dentro das app stores.
Do lado dos programadores existe a vantagem de ser possível integrar a AppCoins na sua aplicação uma única vez, que essa integração depois será transversal a todas as lojas de aplicações que suportam o protocolo e nas quais a aplicação vai ficar disponível.
O protocolo AppCoins também pretende em última análise eliminar os intermediários. Atualmente a Google e a Apple ficam, em média, com 30% de tudo o que é faturado pelos programadores nestas lojas de aplicações. Na visão da Aptoide acabam-se os intermediários, pois o dinheiro flui diretamente do programador para o utilizador e mais tarde do utilizador para o programador.
A empresa prevê ainda que uma parte do valor da transação seja para a loja de aplicações e prevê também que outra parte do valor da transação seja para a empresa em cujo dispositivo essa transação foi concretizada. O que a Aptoide defende é que não é justo, por exemplo, a Samsung não ficar com uma percentagem do que é vendido no Google Play, quando são os dispositivos da Samsung que estão a potenciar o contacto do utilizador com aquelas aplicações. Com a AppCoins os fabricantes de hardware também são compensados, criando um incentivo para mais players do mercado.
Resta por fim explicar de que forma o projeto pretende melhorar os processos de aprovação das aplicações. Como todas as informações vão passar a estar registadas numa base de dados que é distribuída e que não pode ser modificada, a Aptoide quer usar estas informações para acelerar os processos de validação.
A reputação de cada programador vem do seu historial de transações feitas em diferentes lojas de aplicações. Utilizando depois contratos inteligentes, é possível fazer com que uma aplicação seja publicada em diferentes lojas de uma única vez, pois a informação usada nesse processo é transversal a todas as app stores que utilizam o protocolo AppCoins.
Financiar o projeto
Apesar de ser uma empresa bem-sucedida, prevendo atingir uma faturação de oito milhões de dólares em 2017, a Aptoide vai recorrer a financiamento externo e dedicado para a implementação deste projeto. A expectativa da empresa é que no segundo trimestre de 2018 os programadores tenham acesso antecipado à tecnologia da AppCoins, devendo a mesma ficar acessível para os utilizadores no final desse ano.
A Aptoide procura 28 milhões de dólares, o equivalente a 24 milhões de euros, para financiar o projeto AppCoins e para isso vai recorrer a uma Initial Coin Offering (ICO), um mecanismo de financiamento no qual os investidores apoiam o projeto em troca de um determinado número de criptomoedas – neste caso os investidores vão estar a garantir antecipadamente o acesso às AppCoins.
A utilização dos ICO como uma forma de financiamento tem estado a crescer de forma significativa, mas este é um mecanismo que ainda atrai bastantes críticas, sobretudo por poder estar fortemente ligado a movimentos especulativos e por as criptomoedas serem descentralizadas, querendo isto dizer que não há um regulador a atuar em caso de fraude no processo de financiamento.
No caso da Aptoide, a empresa já tem inclusive experiência na angariação de investimento através dos canais mais tradicionais. Questionada sobre o motivo de ter escolhido financiar o protocolo AppCoins através de um ICO, fonte da Aptoide disse na prática que faz sentido fazer uma angariação de capital em moedas digitais tendo em conta que esse dinheiro vai servir justamente para a criação de uma nova criptomoeda.
A Aptoide revelou ainda ao FUTURE BEHIND que o ICO que vai fazer para este seu novo projeto será realizado a partir de Singapura, onde os processos de ICO já são mais comuns. “Não sabemos qual será o desenvolvimento do quadro legal em Portugal. (…) Apesar de existir ainda muita incerteza, o número crescente de ICO já concretizados poderá ajudar no sentido de tornar o processo menos opaco e cada vez mais adotado”, referiu a mesma fonte.
O ICO da Aptoide arranca no dia 6 de novembro, com cada AppCoin a ser transacionada a dez cêntimos de dólar.
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O sucesso a longo prazo de um ICO, para o lado dos investidores, está diretamente ligado ao potencial do projeto associado. No caso do AppCoins o potencial está lá – o conceito de economia circular é muito convidativo para programadores, utilizadores e até fabricantes de hardware -, mas depois falta saber se na prática vai de facto conseguir atrair utilizadores.
A Aptoide tem a seu favor o facto de já ter uma loja de aplicações muito bem estabelecida a nível global. Ou seja, já tem uma base crítica suficiente para conseguir tornar, nem que seja sozinha, o protocolo AppCoins numa realidade para milhões de utilizadores.
Se a Aptoide conseguir mostrar na sua própria loja que o conceito funciona e é vantajoso para todas as partes, então será depois uma questão de tempo até que outras lojas de aplicações queiram integrar as AppCoins nos seus sistemas ou se sintam tentadas a criar sistemas proprietários semelhantes.
A Microsoft – e estamos a falar da Microsoft – tentou quebrar o duopólio Apple-Google na área dos dispositivos móveis e falhou com estrondo. Provavelmente fê-lo da forma mais difícil, isto é, criou um sistema operativo móvel concorrente e com a sua própria loja de aplicações. Do seu lado, a Aptoide já mostrou que mesmo em terreno ‘inimigo’ é possível atingir o sucesso.
Com este seu novo projeto a empresa tem aqui uma oportunidade para abanar, de alguma forma, o duopólio das duas gigantes norte-americanas. Mas em vez de tentar fazê-lo de forma direta, a empresa está a seguir uma abordagem que poucos se atreveram seguir até agora – o segredo para acabar com os monopólios da Google e da Apple pode estar na reinvenção da própria economia associada às aplicações móveis.